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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Guerra Junqueiro: "A rapariguinha e os fósforos"

 Que frio! a neve caía, e a noite aproximava-se; era o ultimo de dezembro, véspera de Ano Bom. No meio deste frio e desta escuridão passou na rua uma desgraçada pequerrucha, com a cabeça descoberta e os pés descalços. É verdade que trazia sapatos ao sair de casa, mas tinham-lhe servido pouco tempo: eram uns grandes sapatos, que sua mãe já tinha usado, tão grandes, que a pequenita perdeu-os ao atravessar a rua a correr, entre duas carruagens. Um dos sapatos perdeu-o realmente; quanto ao outro fugiu-lhe com ele um garotito, com a intenção de fazer dele um terço para o seu primeiro filho.

A pequenita caminhava com os pezinhos nus, arroxeados pelo frio; tinha no seu velho avental uma grande quantidade de fósforos, e levava na mão um maço deles. O dia correra-lhe mal; não tinha havido compradores, e por isso não apurara cinco réis.

Pobre pequerrucha! que frio e que fome! Os flocos de neve caiam-lhe nos longos cabelos louros, adoravelmente anelados em volta do pescoço; mas pensava ela porventura nos seus cabelos anelados?

As luzes brilhavam nas janelas, e sentia-se na rua o cheiro dos manjares; era a véspera de dia de Ano Bom: eis no que ela pensava.

Deixou-se cair a um canto, entre dois muros. O frio enregelava-a cada vez mais, mas não se atrevia a voltar para casa: o pai bater-lhe-ia, porque não tinha vendido os seus fósforos. Além disso em sua casa fazia tanto frio como na rua. Moravam debaixo de um telheiro que o vento atravessava, apesar de o terem calafetado com palha e farrapos. As suas mãozinhas já quase que as não sentia. Ai! como um fósfororozinho aceso lhe faria bem! Se tirasse do maço apenas um, um único, e acendendo-o aquecesse os dedos enregelados! Tirou um: ritche! como estourou! como ardeu! Era uma chama tépida e clara, como uma pequena lamparina. Que luz esquisita! Parecia-lhe estar sentada defronte de um enorme braseiro de ferro, cujo lume magnífico aquecia tão suavemente, que era um regalo.

A pequerrucha ia já a estender os pesitos para os aquecer também, quando a chama se apagou repentinamente: achou-se sentada, tendo na mão uma pontita de fósforo consumido.

Acendeu segundo fósforo, que ardeu, que brilhou, e o muro onde bateu a sua chama tornou-se transparente como vidro. Olhando através desse muro, a pequerrucha viu uma sala com uma mesa coberta de uma toalha alvíssima, deslumbrante de finas porcelanas, e sobre a qual uma galinha assada com recheio de ameixas e de batatas fumegava exalando um perfume delicioso. Oh surpresa! oh felicidade! De repente a galinha saltou do prato, e caiu no chão ao pé da pequerrucha, com o garfo e a faca espetada no lombo. Nisto apagou-se o fósforo, e viu apenas diante de si a parede fria e tenebrosa.

Acendeu terceiro fósforo, e achou-se imediatamente sentada debaixo de uma magnífica árvore do Natal; era ainda mais rica e maior do que a que tinha visto no ano passado através dos vidros de um armazém suntuoso.

Nos ramos verdes brilhavam centenares de balões acesos, e as estampas coloridas, como as que há às portas das lojas, pareciam sorrir-lhe. Quando ia agarrá-las com as duas mãos, apagou-se o fósforo; todos os balões da árvore do Natal começaram a subir, a subir, e viu então que se tinha enganado, porque eram estrelas. Caiu uma delas, deixando no céu um longo rasto de fogo.

- É alguém que está a morrer, disse a pequerrucha; porque a sua avó, que lhe queria tanto, mas que já morrera, dissera-lhe muitas vezes: “Quando cai uma estrela, sobe para Deus uma alma.”

Acendeu ainda outro fósforo: deu uma grande luz, no meio da qual lhe apareceu sua avó, de pé, com um ar radioso e suavíssimo.

- Minha avó, exclamou a pequenita, leva-me contigo. Eu sei que te vais embora quando se apagar o fósforo. Desaparecerás como a panela de ferro, a galinha assada, e a bela árvore do Natal.

Acendeu o rosto do maço, porque não queria que sua avó lhe fugisse, e os fósforos espalharam um clarão mais vivo que a luz do dia. Nunca sua avó tinha sido tão formosa. Pôs ao colo a pequerruchinha, e ambas alegres, no meio deste deslumbramento, voaram tão alto, tão alto, que já não tinha nem frio, nem fome, nem agonias: haviam chegado ao Paraíso.

Mas quando rompeu a fria madrugada, encontraram a pequerrucha, entre os dois muros, ao canto, com as faces incendiadas, o sorriso nos lábios... morta, morta de frio na ultima noite do ano. O dia de Ano Bom veio alumiar o pequenino cadáver, sentado ali com os seus fósforos, a que faltava um maço, que tinha ardido quase inteiramente. - Quis aquecer-se, disse um homem que passou. E ninguém soube nunca as lindas coisas que ela tinha visto, e no meio de que esplendor tinha entrado com a sua velha avó no dia do Ano Novo.

Fonte:
Guerra Junqueiro: "Contos para a Infância", Publicado originalmente em 1877

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