Por: José Mário Leite
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Leio atentamente o texto do Ernesto Rodrigues na última edição do Mensageiro e assaltam-me recordações quase cinquentenárias.
Ia quente 1975 sobretudo o verão, em brasa. Começava a praga dos incêndios florestais e experimentava-se a chaga do radicalismo político.
Tal como ele também eu deveria ter entrado nesse ano para a Universidade mas a “obrigatoriedade” de passar pelos “Cívicos” levou-me de volta a Bragança e a acampar no S. João de Brito que eu conhecia de outras andanças. Quase irreconhecível o velho edifício amarelo ocupado por uma quinta divisão em funções de alfabetização. Ocupava a parte nobre do antigo colégio e encontrei abrigo numa das antigas camaratas que compartilhei com um refugiado chileno que me contou a sua versão da revolução protagonizada por Salvador Allende. Queria fazer de mim comunista à força pois que, segundo ele, se assim não fosse, se a revolução não se encaminhasse sem recuo pelos caminhos do socialismo, o destino de Portugal seria, inevitavelmente o de um segundo Chile!
Simpatizava com a pessoa, mas incomodava-me a insistência. Sobretudo em paredes meias com militares cabeludos e barbudos que entravam e saíam com ar poderoso nos seus jipes verdes enchendo o pátio das minhas antigas brincadeiras, com o negro fumo de diesel. Cabeludos e barbudos era o que mais havia em Bragança. Cabeludo era eu também, mas a barba teimava em não aparecer para além de uns pelos ralos que me enfeitavam o queixo por baixo de um arremedo de bigode.
Cabeludo e barbudo era agora o Ernesto. Quase nem o reconheci. Andava eufórico. Tinha adaptado a obra do padre Telmo Ferraz para teatro e ia estreá-la no Liceu de Bragança que ambos frequentáramos até Junho de 1974. Eu desconhecia a obra. Estranhou o Ernesto a minha ignorância mas deu-me o livro em tons de azul escuro e negro com pequenas estrelas amarelas. Nesse dia esqueci-me do golpe de Santiago, do roncar das chaimites e da entrada e saída contínua dos latino-americanos que subiam a rampa do S. João de Brito. Encostei-me à parede velha e suja, sentado no colchão de espuma cedido pela Guarda Florestal (salvo erro) e só me enrolei no cobertor altas horas quando terminei a leitura. Fui ter com o Ernesto no dia seguinte.
Claro que era impossível poder entrar na peça a estrear dali a pouquíssimos dias. Mas a generosidade do meu velho amigo, descobriu um espaço para me colocar à frente do pano do palco a dizer o “Correio” do Manuel Alegre. Foi o meu oásis! Inesquecível!
O Ernesto seguiu a sua digressão teatral pelo distrito. Eu fui para Macedo fazer reservas de perdizes!
O Ernesto seguiu a sua digressão teatral pelo distrito. Eu fui para Macedo fazer reservas de perdizes!
José Mário Leite, Nasceu na Junqueira da Vilariça, Torre de Moncorvo, estudou em Bragança e no Porto e casou em Brunhoso, Mogadouro.
Colaborador regular de jornais e revistas do nordeste, (Voz do Nordeste, Mensageiro de Bragança, MAS, Nordeste e CEPIHS) publicou Cravo na Boca (Teatro), Pedra Flor (Poesia), A Morte de Germano Trancoso (Romance) e Canto d'Encantos (Contos), tendo sido coautor nas seguintes antologias; Terra de Duas Línguas I e II; 40 Poetas Transmontanos de Hoje; Liderança, Desenvolvimento Empresarial; Gestão de Talentos (a editar brevemente).
Foi Administrador Delegado da Associação de Municípios da Terra Quente Transmontana, vereador na Câmara e Presidente da Assembleia Municipal de Torre de Moncorvo.
Foi vice-presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes.
É Diretor-Adjunto na Fundação Calouste Gulbenkian, Gestor de Ciência e Consultor do Conselho de Administração na Fundação Champalimaud.
É membro da Direção do PEN Clube Português.
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