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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Sem a rádio, as aldeias não despertam

Nasceram quando ainda não havia televisão e permaneceram fiéis à companhia de sempre - a rádio. Ou então foram reconquistados para as ondas hertzianas por programas que lhes dão voz e enganam a solidão. Os idosos portugueses gostam de rádio. Será que a rádio ainda gosta deles?

Era sexta-feira, último dia de Maio, e Idalina ligou o aparelho de rádio, como de costume, pelas 5h da manhã. Estava deitada, com o marido Domingos Meirinhos, e surpreendeu-se com os sons que saíram da emissora habitual, a RBA - Rádio Bragançana. "Era uma música ambiente", recorda a mulher, de 72 anos, no seu apartamento no centro de Bragança. "Isto não é música do programa. Se calhar andaste a mexer aqui e mudaste a estação", disse-lhe o marido, de 76 anos. O que esperavam ouvir era o programa de uma hora, dedicado à música portuguesa, que marcava o arranque das manhãs com o locutor Nicolau Sernadela. Uma hora depois, pelas 6h, Nicolau deveria encarnar a sua personagem mais famosa, o Tio João, e por todo o Nordeste transmontano centenas ou milhares de botões rodavam ou eram pressionados, na expectativa de ouvir o levemente nasalado e rouco "Booooom diiiiiiia, familiazinha" com que abria o programa. A sensação de abandono instalou-se quando a personagem não apareceu.

Naquele dia, Domingos não desistiu à primeira. Levantou-se e rumou à sala, onde o esperava um aparelho mais pequeno e fiável, que nunca saía da RBA. O que encontrou, contudo, foi o mesmo som distante e incaracterístico que inundara o quarto. "Pensei logo: o programa acabou. Levantei-me e fui ter com o Tio João. Quando me viu na rua, as lágrimas começaram a correr-lhe pela cara e disse-me: "Fui despedido ontem à tarde"."

Ainda está por medir a quantidade de chamadas telefónicas que varreram, nesse dia, o Nordeste, mas ninguém duvida de que terão sido centenas. Durante 24 anos, Nicolau Sernadela construiu a sua família de ouvintes e a rede cresceu para lá da sua mediação. Entre as participações no programa, os encontros regulares para almoços com nomes pomposos como "piquenicão" ou "magustão" e as viagens partilhadas, os ouvintes foram-se conhecendo, trocando números de telefone e construindo amizades que muitos juram ser mais fortes do que alguns laços de sangue. Hoje, quando se pronuncia o nome da tia Lurdinhas ou do tio Meirinhos, todos os seguidores do Tio João sabem de quem se está a falar. E o mais provável é que tenham o contacto deles apontado algures. Mesmo que não saibam ler ou escrever. Apesar disto, as duas horas que partilhavam com o Tio João, de segunda a sexta-feira (e quatro horas ao sábado), ainda era a cola que os unia. Sem ele, sentiram-se órfãos. Quem falaria para eles agora na rádio? Quem estaria disponível a deixá-los cantar, tocar harmónica ou recitar poemas?

Nicolau orgulha-se da sua "família" radiofónica, a tal ponto que anuncia aos quatro ventos: "Antes de o americano inventar o Facebook, já o Facebook rural estava inventado por nós." Mas o conceito não lhe é exclusivo. Todos os responsáveis de rádios locais com quem falámos vão invariavelmente dar à mesma palavra: "família". E à mesma conclusão sobre o trabalho que fazem: a rádio é uma companhia e um antídoto para a solidão de milhares de portugueses. Uma verdade reforçada quando se fala dos ouvintes mais velhos.

A socióloga Alexandra Lopes, docente e investigadora na área das problemáticas da terceira idade da Universidade do Porto, sabe que os estudos sobre rádios são quase inexistentes no país, mas não precisa deles para medir a importância que estas têm junto da população mais velha. "Não é preciso ser-se grande especialista para perceber que, historicamente, a rádio tem cumprido uma função social muito importante para as pessoas mais afastadas dos centros e para a população idosa em particular, porque esta acumula uma série de características que a afastam ainda mais de uma participação mais activa e inclusiva, seja questões de mobilidade decorrente de alguma fragilidade física, seja dificuldades económicas. Tudo isto são factores de isolamento, que a rádio ajuda a combater", diz.

E porquê a rádio? "A rádio é um meio de comunicação de acesso fácil, imediato e barato quando comparado com a televisão", explica Alexandra Lopes. Madalena Oliveira, investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, acrescenta: "Quem ouve rádio quer companhia, a rádio sempre teve essa função. E, depois, é uma presença muito discreta na nossa vida, não temos de parar para ouvi-la, ela pode funcionar como uma espécie de banda sonora, enquanto fazemos outras coisas."

Teófilo Miranda, 65 anos, anda, por estes dias, amarrado ao seu café em Gimonde, Bragança. Mas, durante muitos anos, era na estrada que ouvia o programa do Tio João. "Eu era prospector bancário e não tinha horário fixo. Levantava-me às 5h ou às 6h e lá ia", diz. As vozes que enchiam a RBA àquela hora enchiam-no a ele também de prazer e, quando se reformou, passou a transportar o aparelho radiofónico no tractor, para não perder pitada, enquanto amanhava a terra. O café estava, por esses dias, alugado a outras pessoas, mas desde há um ano que Teófilo teve de voltar a geri-lo. "Eu bem que queria não ter de vir para aqui, mas isto é um bocado como o Tio João, o ponto de encontro da terra, não posso fechá-lo", diz, olhando os homens de vozes animadas por mais uma cerveja e as mulheres que jogam às cartas, numa mesa ao canto, enquanto a televisão vai debitando uma música cantada por moças saltitantes e de roupas extravagantes, num qualquer programa de domingo à tarde.

Lá fora estão quase 40 graus e as cervejas não param de sair, enquanto Teófilo fala, comovido, da ausência do Tio João. "A essência do programa, a alma daquilo, é partilhar as boas e más notícias com o Nordeste - morreu fulano tal, houve um acidente com um tractor, perdeu-se um bicho, alguém está no hospital. Agora não sabemos o que se passa, não sabemos o que acontece nas aldeias. O programa era o fermento do despertar das pessoas, sem ele, as aldeias não despertam", diz.

O Tio João nasceu de um acaso, explica o seu criador, Nicolau Sernadela. Há 24 anos trabalhava como DJ numa discoteca para os lados de Macedo de Cavaleiros e o dono da RBA perguntou-lhe se não queria "pôr uns discos" antes de dormir, num horário desocupado da emissora. "Deu-me a chave e eu lá fui. Até às 6h pus música de dança, que trazia da discoteca, e chamava ao programa Sonhos Cor-de-Rosa, porque imaginava que quem o ouvia eram pessoas que ainda se iam deitar, como eu. Às 6h, não sei, foi um clique que me deu. Passou o sinal horário, pus um instrumental do Júlio Pereira e disse que era o Tio João", relembra.

O programa mais famoso da região, que foi ao longo dos anos motivo de várias reportagens nacionais e estrangeiras, fazia a sua estreia. Nicolau tinha 20 anos, mas, do outro lado, os mais velhos, que sempre foram o grosso do seu público da RBA, imaginavam alguém mais velho também. Um "tio", talvez na casa dos 50 ou 60 anos, com quem se identificavam. "Logo no primeiro dia disse que era o Tio João e que ia fazer uma família. Nesse dia apareceu a primeira participante, a prima Helena, de Senhoane, no Mogadouro - chamamos primos e primas aos solteiros e tios e tias aos casados -, e depois mais e mais pessoas. Comecei a conquistar as aldeias e cheguei às 2500 localidades", diz o locutor.

Nicolau chegou a este número redondo à custa das agendas e cadernos em que, ao longo dos anos, nunca deixou de apontar o nome de quem lhe ligava, e de onde estava a fazê-lo. Hoje conhece milhares de ouvintes pela voz e garante que poucas vezes se engana a identificar a pessoa do outro lado da linha.

O programa era feito por quem o ouve. Começa sempre com as orações da manhã, que os próprios ouvintes se oferecem para dizer na maior parte das vezes, e continua com momentos de reflexão orquestrados pelo locutor (conselhos de vida, histórias de onde se extrai uma qualquer moral), antes da animação levada por quem liga. Os que tocam, os que cantam, os que lêem crónicas ou só falam em verso. Os que levam as novidades tristes e boas. Os que pedem ajuda.

Na rádio Brigantia, o director de programas, Paulo Afonso, sabe bem o que é a sensação de abandono que assola as aldeias do Nordeste. "Não há um ouvinte-tipo da rádio local, mas eu diria que aqui as pessoas ouvem as rádios nacionais por entretenimento e as rádios locais por necessidade, para saberem o que se passa à sua volta. E em questões tão básicas como o trânsito. Se houver um fogacho qualquer no IC19, é capaz de ser noticiado durante horas, mas aqui, se houver um acidente, é preciso haver mortos para ser referido nos noticiários nacionais e mesmo assim... E ninguém fala das estradas mais pequenas", diz.

Mas a solidão não assola só as aldeias, e Nicolau Sernadela é o primeiro a lembrá-lo. "Aqui, na região transmontana, nunca ouviu dizer que alguém fosse encontrado em casa morto há não sei quanto tempo. É por isso que tenho o sonho de fazer o programa para todo o país. Em Lisboa e no Porto não há pessoas sozinhas? Não há pessoas que precisam de uma família? Há muitas pessoas sozinhas em casa, que vivem em apartamentos sem sequer conhecer os vizinhos", diz o locutor, na sala da sua casa, no centro de Bragança, onde está meramente de passagem - chegou na noite anterior de uma viagem de uma semana a Espanha, com os seus ouvintes, e parte na próxima madrugada para umas férias com a mulher, que todos conhecem por Tia Leninha, e o filho, de três anos, o João André.

Se o pudesse ouvir no seu apartamento no Bonfim, no Porto, Fernanda Nunes, 60 anos, certamente concordaria com Nicolau. Em 1996, a bancária reformada foi diagnosticada com esclerose múltipla e, por estes dias, não tem andado nada bem. O calor não ajuda e gestos simples como tentar abrir uma porta são um martírio. Andar, então, é quase impossível. Vale-lhe uma senhora que a ajuda com as tarefas de casa todas as manhãs. Mas, ainda assim, passa muito tempo sozinha. A sua companhia mais assídua, garante, é a Rádio Festival - a emissora mais ouvida no Grande Porto. "Ah, ouço todos os dias, há programas de que gosto muito. E quando posso participo, peço discos para mim ou para os familiares. A rádio é muito importante para mim, gosto muito de música e aquilo é como uma terapia. Ajuda-me a combater a solidão e faz-me mais companhia do que a televisão, porque a minha doença também me afecta a visão", diz.

Os locutores das emissoras locais, que lideram programas de antena aberta, não têm dúvidas sobre a sua função. "Nós somos uma rádio familiar, que conversa com o seu auditório e fala a sua língua. No dia-a-dia, tenho a perfeita noção de que a rádio alivia alguma carga emocional de pessoas que têm problemas aos mais diferentes níveis e nos consideram uma família. E não são só as pessoas mais velhas", diz Paulo Jorge Moreira, o locutor do programa O Fado que, de segunda a sábado, preenche as ondas da Festival entre o meio-dia e as 14h.

Durante as duas horas de emissão, são muitos os que telefonam para o programa ou enviam mensagens, pedindo uma música que raramente dedicam a uma só pessoa. Em muitos casos, a conversa parece esticar-se para lá do que seria necessário, como se quem liga não quisesse voltar tão depressa para o anonimato.

Alberto Rocha, o director da Festival, não imagina a rádio sem esta interacção constante com os ouvintes. "Há muitas pessoas que nos dão conta de que têm na rádio a única companhia. Sabemos que temos essa função de combate à solidão e, por isso, limitamos a música, para podermos conversar com as pessoas, fazendo-as sentir que estamos ali para elas", diz.

Para Luís Bolixe, professor do Instituto Politécnico de Portalegre e investigador no Centro de Investigação de Média e Jornalismo da Universidade Nova de Lisboa, o segredo que faz das rádios locais a companhia preferida de tantos portugueses explica-se numa palavra: "proximidade". "A rádio em geral promove muito a proximidade entre as pessoas e as rádios locais ainda mais. Elas promovem o próprio território como espaço colectivo e de partilha. E, pela experiência que tenho, isto acontece tanto nas zonas rurais como urbanas. Os programas são, muitas vezes, o princípio de uma relação que depois se estende num espaço muito concreto e real", diz.

Ilda Gonçalves, 85 anos, teria muito a dizer sobre isto. Na sua casa caiada, na aldeia de Vila Nova, a poucos quilómetros de Bragança, encosta a muleta que a ajuda a caminhar e sentencia: "O que aconteceu ao Tio João foi um balde de água fria em cima de toda a família. Sabíamos tudo uns dos outros. Eu ligava para lá, cantava umas cantiguinhas, mas rápido, que o programa é de toda a gente e toda a gente quer falar. Se alguém morria aqui, em Vila Nova, eu ou outra pessoa comunicávamos para a rádio e tudo se sabia. Agora não sei de ninguém. Não sei do resto da família."

Pouco dada a tristezas, Ilda anima-se, ajeita-se na cadeira e anuncia: "Vou contar-lhe uma história. Há uns dez ou doze anos falou um senhor para o Tio João, a pedir uma cadeira de rodas, que ele é disso, sabe? Não há ninguém que não reze pela alma da família do Tio João... Logo ali, houve uma senhora que disse que dava a cadeira, mas quem a levava? E outro homem disse: "A cadeira vou buscá-la e levá-la eu." E foi, mas viu a situação tão triste que pediu mais ajuda", conta.

A cadeira, perceberam então os ouvintes do Tio João, era para um senhor muito velho que, tal como a mulher, estava acamado, e era tratado pela filha, Silvina, viúva e mãe de dois filhos, um dos quais uma rapariga com deficiência mental. A casa, para os lados de Armamar, recorda a velha transmontana, era imponente, mas ficara inacabada quando o marido de Silvina morrera de repente. "Quando ouvimos, no programa, a miséria que ia naquela casa, sem um cobertor, sem um tapete, a gente ficou chocada e combinámos ir lá fazer uma visita e levar ajuda", recorda.

Encheram-se carros com bens alimentares e para a casa. E lá foram Ilda e "o Fernandinho, o Rogério mais o Alcino de Vinhais, a tia Gracinha" e outros quantos de quem já não se recorda. Para encurtar uma história longa, a vida daquela família de Armamar mudou desde esse dia. Fez-se um peditório, acabou-se a casa e até a câmara local foi chamada a intervir, por acção da família radiofónica do Tio João. "Vou vê-los todos os anos. Eu não sei ler nem escrever mas a Silvina, que ainda toma conta da mãe muito velha e acamada, faz cada poema! Isto, está a ver, só o Tio João", conclui, sorridente.

Não será bem assim, apesar de Nicolau Sernadela ter muitas histórias para contar de ajuda oferecida ao longo dos anos. Compraram-se óculos e cadeiras de rodas para quem precisou, construíram-se casas-de-banho a quem não as tinha e até se ajudou a reconstruir habitações apanhadas pelo fogo. Mas esta vertente solidária acaba por fazer parte da vida de outras rádios locais - sendo espaços de proximidade, seria possível ser de outro modo?

"As pessoas comparecem a qualquer manifestação de solidariedade que organizemos", garante Américo Simões, director de programas da Rádio Santiago, de Guimarães. Alberto Rocha, da Festival, ainda recorda a recolha de roupa e alimentos que a rádio organizou, no ano passado, por altura do Natal. E a do homem de "60 e poucos anos" que há cerca de uma semana bateu à porta da estação a pedir se podiam ajudá-lo a arranjar uma cadeira de rodas para a mulher, que fora operada. Paulo Afonso, da Brigantia, sabe bem que o programa mais famoso da sua emissora - os discos pedidos de Os Amigos da Onda - é muito mais do que um espaço para pedir uma canção. "A música? Que interessa a música? A música é só uma desculpa para as pessoas poderem falar. Falam de tudo o que lhes apetece e, se for preciso, também nos mandam à fava. Mas ainda há dois anos tivemos um caso engraçado. Dois ouvintes casaram-se e o vestido da noiva fomos nós que o comprámos, com o apoio de uma senhora em Inglaterra, que ouviu o programa online e quis contribuir. Depois, até veio ao casamento e tudo", diz.

Porque, depois, há isso. Raras são as rádios que não estão hoje na Internet e, de repente, a família que está longe parece mais perto por causa da rádio. Ligam ou escrevem de França, da Alemanha, da Austrália, da África do Sul...

Você pode ir a França e perguntar quem é o Luís Modinhas e vai encontrar milhares de pessoas a responderem-lhe." Luís "Modinhas" Pires, 74 anos, está sentado à sombra, na sua casa em Paradinha de Outeiro, a cerca de 20 quilómetros de Bragança. Maria de Lurdes, a mulher, de 65 anos, atarefa-se entre fazer-lhe companhia, e aos familiares e amigos que os acompanham nesta tarde abrasadora de domingo, e (descobrimos depois) em aprontar uma mesa para o "lanche" que se há-de seguir à conversa e que só tem produtos da região: peixinhos pescados no rio Sabor, pelo amigo Ramiro, folar, alheira e bolo, feitos por Maria de Lurdes, além de presunto, salpicão e bola de carne. Para já, a conversa corre lenta cá fora, partilhada por vários intervenientes, como num jogo de pingue-pongue.

Luís - No programa, toco realejo [harmónica], canto e digo as orações. Foi uma coisa diferente que chegou aqui às aldeias, as pessoas alguma vez lá pensaram que iam poder ouvir-se na rádio?

Maria de Lurdes - "E havia tanta gentinha que nunca tinha saído da aldeia onde morava, até ir num passeio do Tio João...

Luís - Criou-se muita amizade entre as pessoas, da Beira Alta, da zona de Chaves. Gente que só conhecemos pela voz.

Maria de Lurdes - Por ali sabemos de uma pessoa amiga que faleceu, onde há uma festa, até a temperatura que vai fazer! Naquele dia, às 5h tinha a rádio ligada, quando não deu o programa só me deu vontade de chorar.

Luís - Na tarde anterior, soubemos que tinha acabado, ligaram-nos...

Lurdes - Fiquei tão triste, tão triste...

Madalena (a filha) - Eu não ouvia o programa, mas o fim do Tio João sentiu-se até nos negócios. As empresas de camionagem de Bragança, que trabalhavam com ele para os passeios, estão paradas. E anda um fum-fum na rua, nota-se nas conversas. Não se podia deixar morrer um programa destes.

Luís - Dizem que somos uns parolos, mas até os parolos têm direito à rádio, ou não?

O Tio João saiu de antena porque a RBA cedeu a frequência à Media Capital, que optou por utilizá-la, na maior parte do dia, para passar a M80. Uma realidade que tem afectado outras rádios locais pelo país, apesar de o número de emissoras não ter sofrido uma oscilação muito grande nos últimos 20 anos. Em Junho de 2013, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) contabilizava 314 operadores de rádio local e 328 serviços de programas de rádio (estações de rádio) em todo o país, incluindo as regiões autónomas. Em 1989, o número de rádios locais era o mesmo, 314, mas chegou a ser de 347, em 2007. José Faustino, da Associação Portuguesa de Radiodifusão (APR), tem uma justificação para esta consistência: "As rádios locais nasceram em meios muito deprimidos, em termos de mercado, o que fez com que, comparativamente, tenham mais defesas para a crise de que se começou a falar em 2008, porque elas viveram praticamente sempre em crise. É óbvio que algumas estão a pagar o preço, que se perderam empregos, cortaram custos, mas no geral foram-se adaptando e sobreviveram", diz.

Apesar de lamentar a falta de estudos e estatísticas sobre o panorama das rádios no país (incluindo as audiências), José Faustino também acredita que "os seniores têm mais apetência para ouvir rádio" e que "quem ouve rádio a sério prefere as rádios locais, de proximidade". Também não tem dúvidas de que há mais rádios nos grandes centros, como Lisboa e Porto, e no Norte, porque "é aí que estão as pessoas". Ou que estas emissoras prestam um serviço de apoio importante. "Rádios que falam das pessoas e das realidades que elas conhecem, das coisas que aconteceram ali ao lado e ainda lhes dão a oportunidade de deixar um recado no ar ou ligar para lá e falar um bocado são importantíssimas. É por isso que a Rádio Festival tem tanto impacto", exemplifica.

Quase se podia dizer que é a Rádio Festival no Porto e a Rádio Santiago em Guimarães. As duas seguem a mesma receita, a receita que o Tio João também seguia, em muitos aspectos - abrem a antena aos ouvintes, promovem encontros e festas, organizam acções de solidariedade. A Santiago tem ainda a fama de organizar passatempos bizarros. Já pôs os ouvintes à procura de moedas em ruas da cidade, pagou dívidas e, no mais polémico dos seus concursos, sorteou, em 2009, "um funeral de sonho". O director de programas da Santiago não tem qualquer dúvida sobre a razão do sucesso da rádio, a mais ouvida na região do Ave, companhia dos idosos, sim, mas também dos operários das fábricas da região. "As pessoas gostam muito de participar no famoso programa de discos pedidos, porque é uma oportunidade de quem está em casa, sozinho, se ligar aos outros. E os nossos ouvintes já criaram entre eles um grupo de amigos, fazem convívios e às vezes até convidam os locutores. Este é o significado da rádio local. Nunca quisemos fazer concorrência à Rádio Comercial, à RFM ou à TSF. Somos nós, falamos da nossa terra, fazemos a cobertura do que cá se passa, com as nossas gentes", diz.

Firmino Aarão, 54 anos, ouvinte da Santiago "há anos", é um fã incondicional. "Aquilo é uma terapia. Uma pessoa liga a televisão e só ouve notícias da crise e mais crise, na Santiago há locutores maravilhosos, que brincam, partilham tudo com os ouvintes. Muitas vezes ligam doentes, fechados em casa, e os locutores dão-lhe conforto, carinho, naqueles minutos levantam o astral." Firmino liga para os discos pedidos sempre que pode. E conhece, claro, Rosa Maria Fernandes, 61 anos, de Paço Vieira, que só não telefona a pedir uma música se não puder mesmo e diz, entusiasmada: "Sou fiel à Santiago, para mim é a Santiago e mais nenhuma." E porquê? Diz que não sabe, mas que não quer outra coisa para lhe fazer companhia. Que a rádio está sempre ligada e que "é doida" por ela.

Conceição Ferreira não teve, assim, uma paixão à primeira audição pelo Tio João. Até resistiu durante anos a sintonizar o programa, apesar de na aldeia de Fontes muitos lhe falarem nele. Foi num passeio aos Picos da Europa, em Espanha, que a professora reformada, de 60 anos, se deixou conquistar. "O meu cunhado é padre e costumava ler as orações no programa. Um dia comentou que iam num passeio até Covadonga e o meu filho, que andava no 6.º ano e estava a estudar a Reconquista Cristã, pediu se não podíamos ir também." Sem nunca ter ouvido o programa, a professora viu-se numa camioneta, a caminho de Espanha, rodeada pela "família" do locutor. "Não sei explicar o que senti ali no meio. Parecia que aquelas pessoas se conheciam de toda a vida e que tinham laços familiares. Trataram-me como se fosse um deles e não havia grupinhos, apesar de serem de meios muito diversos. Havia gente do meio rural, advogados, juízes. Percebi aí o fabuloso poder de mobilização do Nicolau. Os melhores amigos que tenho, arranjei-os na família do Tio João", conta.

A professora gostava de participar no programa lendo textos que ela própria escrevia. E era tão assídua que já vários ouvintes a conheciam pela voz. "A minha mãe esteve internada, porque partiu o colo do fémur e na cama ao lado da dela, no hospital, estava uma senhora que um dia me perguntou se eu não era de Fontes. Conhece-me?, perguntei-lhe. E ela disse que era do programa, de me ouvir", conta.

A investigadora Madalena Oliveira diz que as rádios locais acabam por ter um pouco a função "do café da aldeia, onde tudo se sabe e onde se trocam as novidades". E lamenta que o que aconteceu à RBA, ao ceder a antena a uma emissora nacional, esteja a acontecer noutros pontos do país. "Temos demasiadas frequências para o tamanho do país e as rádios locais mais fortes, mais implementadas, são as que acabam por cativar as grandes cadeias, que querem usá-las para transmitir a sua emissão. E isto é um problema grave que está a afectar as rádios locais. Devia haver mais regulamentação", defende.

Que consequências é que isto vai ter na vida dos ouvintes mais velhos é algo que ainda está por definir. "A nossa geração mais velha será, porventura, a última que cresceu ainda sem televisão. Em termos geracionais, esta é a geração que cresceu apenas com a rádio. Não sei, por isso, se é líquido que as próximas gerações idosas sejam tão ligadas à sua rádio local, mas há projectos interessantes a nascer e destinados especificamente à população idosa. Temos de ver o que irá acontecer", diz a socióloga Alexandra Lopes.

Foi neste contexto que nasceu a rádio Sim, uma rádio nacional, do grupo Renascença, que é expressamente destinada à terceira idade. Desde 2008 que há programas a apelar à participação dos ouvintes e muita música das décadas de 1940, 50, 60, 70 ou 80.

Dina Isabel, a directora da Sim, diz que a rádio que ocupou as antigas frequências em onda média (AM) e FM da Renascença nasceu depois de aquela se ter "reposicionado" no mercado, deixando "órfã" a geração mais velha. "Houve factores emocionais, alguma obrigação de missão e também questões comerciais que pesaram no nascimento da Sim", diz. E este último factor, num país em que quase 20% da sua população tem mais de 65 anos, pode ser aquele que, no futuro, venha a dar algum alento às rádios que têm na terceira idade o seu público mais vasto e fiel. Só falta descobrir como rentabilizá-lo. "Os nossos ouvintes têm uma relação com os locutores acima da média. Tenho a certeza de que se houvesse numa sala um concerto do António Calvário e na sala ao lado um programa com os nossos locutores, os nossos ouvintes encheriam esta segunda sala, apesar de amarem o António Calvário", diz Dina Isabel.

Lurdes Pires, 87 anos, não é de intrigas, mas apostamos que seria capaz de refilar com Dina Isabel, garantindo-lhe que nenhum locutor é tão amado pelos seus ouvintes como o seu Tio João. Vive numa rua sossegada de Bragança, numa casa com flores e ramadas no pátio, que a isolam e à filha com problemas mentais do resto do mundo. "Temos vivido estes dias tão sozinhos sem o nosso programa", lamenta-se.

Mas não por muito tempo. A tia Lurdinhas, como todos as conhecem, transforma a vida em poesia. Escreve poemas atrás de poemas sobre tudo o que lhe acontece. Sobretudo o que lhe acontece de bom, porque diz que não gosta de se perder em tristezas e em maldizeres. A escrita nunca lhe foi estranha, mas garante que se tem hoje sete livros publicados (e outro em fase de criação) é graças ao Tio João. "Na rádio incentivavam-me, diziam-me: "Escreve tanta poesia, diz tantos poemas na rádio, podia escrever um livro." Só tenho a 4.ª classe, mas as pessoas encontravam tanta graça no que eu dizia que lá me enchi de coragem. Tenho sete livros e se não fosse este programa não tinha escrito nem um", afirma.

No Nordeste transmontano, há milhares de pessoas à espera do dia 1 de Agosto, para confirmar se sempre é verdade que o Tio João regressará à rádio. Depois de muitos convites, "até para o Canadá", como garante Nicolau Sernadela, foi a Brigantia que ficou com o tio mais famoso do país. Em muitas casas, a frequência já está sintonizada na Brigantia e de lá não sai. Garante-o a tia Ilda, de Vila Nova, o tio Modinhas, de Paradinha de Outeiro, e a tia Lurdinhas, de Bragança. E se ainda não perceberam porquê, ela explica-o, num dos poemas do seu último livro Envelhecer Renovando, dedicado ao Tio João:
 "Se não fora este programa/ Ai meu Deus o que seria/ Passávamos lado a lado/ E ninguém se conhecia."

PATRÍCIA CARVALHO 21/07/2013

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