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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

O menino do rio - Conto de Natal

 Nem ele mesmo conseguia explicar, mas desde que sabia de si, o menino sentia uma enorme atração pelo rio. Encantava-se com o fluir da água, ora calma e muito quieta como se fosse a pele do rio, ora revolta, como se com a sua fúria o rio quisesse mostrar descontentamento e tomar os lugares que são seus.
Quando isto acontecia, era fugir-lhe para o longe que ele não olhava a conveniências e nem sabia a força que tinha. O rio virava assim como que um cavalo com o freio nos dentes. Transbordava e alagava sem que qualquer margem fosse capaz de o suster. Vingava-se da violência delas quando o sustinham.
Nem parecia o mesmo dos dias e das semanas de serenidade, quando a qualquer um só dava ganas para entrar por ele adentro em mergulhos feitos abraços entre o líquido que era o rio e o sólido que é o nosso corpo. Ao moço quando isso fazia brotava-se-lhe um sentir que o fazia ter-se como uma parte daquele manto de água a escorrer.
Certo e sabido, é que não havia dia em que ele não desse uma escapadela até à beira do rio. Por sorte morara-lhe ao pé e por isso o tinha quase como um território seu, um prolongamento da sua casa. Há quem tenha hortas e jardins e assim como prolongamento do ser-se, mas para ele seu era o rio com os peixes e tudo o mais.
Chegava a pensar que sem o ele não podia viver. Entendiam-se um e outro, como dizia quando lhe perguntavam o que fazia durante tanto tempo e tantas vezes ao pé do rio. Falavam com os olhos, jurava, metendo na conversa um ou outro peixe e mesmo até um ou outro pato, quando o vagar para isso dava.
Está-se mesmo a ver que não faltava quem levasse para a brincadeira estes dizeres e havia até quem começasse a pôr em causa o afinamento da cabeça do rapaz, como sempre sucede às pessoas sem fronteiras no sonho e na capacidade de imaginar. Somente alguns sabem que não há longe nem distância para quem se não fica pelos limites da ponta do nariz nos modos de ver.
Certa vez, ia o outono pelo meio com a paisagem pintada de mil cores, mais parecendo tela feita obra-prima de pintor excelso, quase no lusco fusco e com um dia límpido no entardecer, atardou-se o moço a vir para casa por não ter dado pelo passar do tempo. Era frequente não sentir o caminhar do sol para o lado de lá das montanhas, mas nesse dia alheou-se completamente.
Quando a páginas tantas estava a olhar para a água, mais atentamente porque lhe parecia diferente, o rio lindo, quase igual, com algo que não sabia explicar, mas só sentir, viu uma série de peixes a saltar. Umas vezes mais ao longe, outras vezes mais ao perto. E ele ali a ver e a apreciar.
Veio a lua, o breu tomou o lugar da luz, escuros o rio e o céu, cheios de pontos de luz. Lá no alto, as estrelas, cá em baixo as luzes da cidade e das casas espelhada na água. Céu e rio mais pareciam gémeos de nascença envoltos no mais absoluto som do silêncio.
O rapaz não tirava os olhos dos peixes e eles, vá lá saber-se a razão, ou acredite-se ou não, pareciam reparar nele. Não andará longe da verdade quem disser que ele e eles se sentiam velhos companheiros de brincadeira, elementos de uma mesma coisa, de nome natureza infinda e infinita.
Estiveram horas no bailado os marotos dos peixes para encantamento do único espectador, num desenvolver artístico comandando por um deles, que pelo menos aos olhos do singular público surgia a cada minuto com uma cor diferente, exibindo-se galhardamente e parecendo querer estabelecer conversa desfiada.
O certo, é que por milagre ou por mera imaginação, o diálogo aconteceu e não durou pouco, que isso de se conversar é como diziam os antigos, palavra puxa palavra e depois disse-se tudo e mais alguma coisa, quantas vezes sem se pensar muito. Nada custou tornarem-se amigos. Viraram companheiros de tertúlia até.
Sim, porque o encontro não foi caso de uma primeira e única vez. Durante semanas foi quase como um namoro que não assim se tornou dadas as circunstâncias próprias de cada qual. Mas deu para conversarem e discorrerem como bons conversadores. Comunicavam à sua maneira, que devido a não ser entendível, nem vale a pena que se tente perceber.
Ainda está por inventar semelhante dialeto que permitiu por exemplo que o peixe explicasse que a sua cor não era fixa, porque não se trajando e nem se pintando ele antes de vir para a superfície, era do olhar do observador que ela resultava. Conforme o estado da alma, a luz que entrava pelos olhos que são a janela de cá de dentro, assim ela assumia tons mais alegres ou mais soturnos.
O tempo foi passando e o dia de Natal chegou. Uns dias antes o peixe afirmava a pés juntos, que é como quem diz com as guelras unidas, que na noite desse sagrado dia, iria fazer uma surpresa ao rapaz e à sua família, para provar que tudo o que ele contava em casa acerca deles era verdadeiro.
Não dizia para não estragar a surpresa. Que estivesse atento ao presépio por volta da meia noite, recomendou imediatamente antes do menino do rio se despedir para ir para casa usufruir a consoada no remanso do lar harmonioso e nessa noite especial como sempre mais alargado por virem avós, tios e primos, como apraz a família que se preze.
Ceou-se, distribuíram-se as prendas no meio da algazarra, e os ponteiros do relógio na sala foram-se mexendo e avançado para a meia-noite. Veio a lume o presépio e mais a sua beleza que nesse ano era tamanha e mais que nunca, olharam e apreciaram com deleite.
Nisto, num ápice, tudo ficou escuro. Foi coisa de um piscar de olhos. Mas quando se tornou a fazer luz, todos viram. No presépio, dentro da cabana e mesmo ao lado do Menino Jesus em cueiros nas palhinhas deitado, estava um aquário em forma de rio, e dentro dele um peixe cor-de-rosa a dar ao rabo e a nadar com um ar todo satisfeito. Abria e fechava a boca como se estivesse a cantar, jurava o menino.
Eu por mim, não sei bem, mas acredito. Só quero é que aquele peixe de que o menino do rio falava, nos apareça sempre com a cor daquela noite. A mim e a si que o ficou a saber dele, através deste correr de linhas que finda aqui.

Manuel Igreja

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