Corria o ano de 1707. Em Lisboa, em casa de Manuel da Costa Miranda, um boticário de Bragança que ascendera a contratador, juntaram-se 11 homens da “nação de Bragança” envolvendo-se em cerimónias e práticas de judaísmo, que o declarante não especificou.
Mas vejamos em concreto a denúncia feita por António da Costa Chacla, um dos participantes na reunião: - Haverá 4 anos, em Lisboa, ao Lagar do Sebo, em casa de Manuel da Costa Miranda, contratador, boticário, solteiro, com ele e com João da Costa Vila Real, contratador, casado, e com dois filhos deste, chamados José da Costa e João da Costa, irmãos, contratadores, e com Fernando da Fonseca Chaves, casado com Micaela da Silva e com Félix Leandro Pereira, corretor, solteiro e com António Sá Carrança, tecelão de sedas, casado e com João Lopes, sem ofício, casado e com Luís Henriques, tecelão de sedas, casado, e com Belchior Mendes Fernandes, tecelão de sedas, casado, todos de Bragança exceto João Lopes que é de Chacim… Esta seria uma simples e normal ocorrência, que poderia repetir-se em outras moradias de Lisboa, com outros judaizantes brigantinas. E poderia repetir-se em Faro ou Torres Vedras, Porto ou Beja, Setúbal ou outras mais localidades de Norte a sul de Portugal, e também em muitas localidades estrangeiras que, por toda a parte, se dispersava então a “nação de Bragança”, acossada pelo santo ofício. Aquele parece ser um encontro de poderosos homens de negócios e endinheirados fabricantes de sedas. Mas poderia ser um encontro de ourives ou letrados, que a ascensão social era objetivo sempre perseguido e a “nação de Bragança” é verdadeiramente exemplar a este respeito.
Voltemos atrás, à casa de Costa Miranda, no Lagar do Sebo, ao convívio daqueles 11 brigantinos que, obviamente, todos eles foram estagiar nas celas da inquisição. Tentaremos seguir o percurso de cada um daqueles fabricantes de sedas e homens de negócio nascidos em Bragança na segunda metade do século XVII, mas por agora trataremos do caso singular de Fernando Fonseca Chaves.
Em textos anteriores apresentamos já os seus ascendentes, paternos e maternos e alguns tios e primos. Faltará dizer que ele nasceu em Bragança pelo ano de 1667, sendo filho de Jacinto Ferreira e Isabel da Fonseca, fabricantes de sedas, como uma grande parte da gente da nação de Bragança à época. Se bem que no ano anterior o seu pai se fosse apresentar a Coimbra confessando culpas de judaísmo e não obstante as 4 dezenas de “judeus” de Bragança que foram sentenciados naquele tribunal em 1670, podemos dizer que Fernando cresceu num ambiente de relativa acalmia, no que respeita a perseguição inquisitorial naquela cidade. O choque terá surgido quando completou 18 anos de idade e vários judaizantes brigantinos, entre eles o seu pai, foram chamados a Coimbra e saíram sambenitados no auto de 4 de Fevereiro de 1685, com dois condenados à morte: Francisco Nunes, Raba e Isabel de Faro, mulher de seu tio Manuel Santiago Pimentel, conforme vimos em texto anterior.
Adensava-se de novo o ambiente religioso em Bragança, com as nuvens do medo a encher as ruas e as casas, pois a inquisição amedrontava especialmente aqueles que, na terminologia inquisitorial, tinham sangue judeu. E o medo semeava em muitos espíritos da gente da nação projetos de fuga para outras terras de Portugal e países estrangeiros. Não conseguimos precisar a data em que Fonseca Chaves decidiu abandonar a terra, mas terá sido ao findar do século de 600, depois de casar e tendo já dois filhos, o mais velho nascido em 1697. Aliás, durante alguns anos, ele mantinha uma casa em Bragança e outra em Lisboa, conforme consta das suas confissões. E, morando em Lisboa, continuou a ter interesses em Trás- -os-Montes, como haveremos de ver quando tratarmos do inventário de seus bens.
Por agora, fiquemos em Bragança para conhecer uma irmã de Fernando, chamada Catarina Pimentel, casada com António Mendes, ourives da prata, que em Novembro de 1716 foi preso pela inquisição de Coimbra e antes dele, em Março do mesmo ano, foram levados para o mesmo tribunal o seu filho Gaspar de Faro e a sua filha Maria Mendes Pimentel. Uma outra filha, Mariana Pimentel, que então contava 20 anos e se fora para Lisboa, logo que soube da prisão dos irmãos, foi também apresentar-se ao santo ofício. Fernando Fonseca tinha também uma meia-irmã, nascida fora do casamento, 22 anos mais nova que ele, filha de seu pai e de uma cristã-velha chamada Maria Sanches. Dava pelo nome de Catarina Ferreira e também ela abandonou Bragança e se foi morar em Lisboa, certamente em casa do irmão que administrava os 200 mil réis que o pai lhe deixara de herança.
O nosso contratador era casado com Micaela de Morais, de uma família de grandes contratadores, a família Silva (Polindro), da qual falaremos em próximos textos. Por agora diga-se que, quando o prenderam, Fernando trazia consigo uns papéis que lhe foram tomados. Trata-se de um memorando, em forma de requerimento aos inquisidores, em seu nome, no de sua mulher e filhos, queixando-se de seu cunhado Duarte da Silva, que era falto de juízo e que lhe roubara de casa umas peças de prata e umas fazendas, e, possivelmente, se quisera vingar dele inventando-lhe culpas de judaísmo. Efetivamente, uma das testemunhas de acusação foi Duarte da Silva que, estando preso em Évora, em 1710, confessou que fora doutrinado na lei de Moisés por seu cunhado Fernando Fonseca Chaves, morador em Lisboa, junto ao Paço do Bem Formoso. Curioso: os inquisidores que valorizaram esta denúncia foram os mesmos que, ao despacharem o seu processo, escreveram: - Pelas respostas disparatadas que tem dado na Mesa, em que deu mostras de não estar em seu juízo perfeito, mas antes ter alguma lesão nele (…) pareceu a todos os votos que o réu não tinha razão alguma no entendimento, mas sonoroso, como perplexo nas falas e respostas que deu nas matérias em que se lhe toca.
Uma terceira acusação foi enviada de Coimbra, tirada do processo de Salvador Pimentel dizendo que, 8 anos atrás, em certa ocasião, estando o seu parente Fernando Fonseca doente, o foi visitar e o encontrou “molestado na cama, lendo um livro” que continha orações judaicas e lhe leu algumas “e se ofereceu para lhe ensinar todas as vezes que quisesse fosse a sua casa”. Terminou a confissão recitando a seguinte oração que Fernando lhe ensinara e deviam rezar no Kipur: Do nascente ao poente Bendito e louvado seja Deus para sempre. Do poente ao nascente Louvado seja Deus para sempre. Senhor, que o sol detivestes Cinco horas naquela serra Quando Josué venceu Aquela temerosa guerra, Vós sois o Senhor dos senhores A quem se dão louvores. Ofereço-Vos, Senhor, Esta minha alma, pois sois Deus, minha alegria. E depois, a terminar o jejum do Kipur, olhando ao para o céu, deviam rezar: Aqui venho Senhor Diante de Ti oferecer Este meu jejum que hoje fiz Em santo louvor teu Para que Tu, Senhor, Te lembres de mim E dos maus apertos me livres E me favoreças, Senhor, com teus bens, Como favoreces os escolhidos. Bendito e louvado seja O Teu santíssimo nome De hoje para todo o sempre. Ámen.
Sobre o processo de Fernando Chaves, queremos realçar a importância do inventário de seus bens, o que trataremos no próximo texto. Agora adiantamos que os mesmos lhe foram confiscados pela sentença lida no auto da fé de 7.7.1713 que o condenou ainda em cárcere e hábito penitencial perpétuo, penitências espirituais e 50 mil reis para alimentos. Resta dizer que Fernando e Micaela tiveram dois filhos. Um deles, Alexandre da Fonseca Morais, seguiu o caminho do pai, tornando-se contratador. O outro, José da Fonseca Morais, estudou para advogado na universidade de Coimbra e morava em Lisboa, a S. Jorge, em 1728, quando decidiu apresentar-se no tribunal da inquisição a confessar culpas de judaísmo.
Veja-se a forma como iniciou a sua confissão. Trata-se de um exemplo concreto e flagrante do que afirmámos ao início, sobre o convívio entre os membros da dispersa “nação” de Bragança: - Disse que haverá 9 anos, em Lisboa, em casa de seu primo-segundo por via paterna, José Rodrigues Pimentel, ourives do ouro, casado com Isabel Pereira, natural de Beja e morador em Lisboa, donde se ausentou, não sabe para onde, se achou com ele e com dois primos inteiros dele confitente, chamados Gaspar de Faro, solteiro, ourives da prata, natural de Bragança e morador em Faro, filho de António Mendes, ourives da prata e Catarina Pimentel e com Manuel de Santiago, ourives da prata, solteiro, reconciliado, filho de Brites da Costa e não sabe o nome do pai, natural de Bragança e morador em Lisboa, donde se ausentou, não sabe para que parte, e estando todos quatro lhe disseram que ele confitente andava errado na lei de Cristo e para se salvar devia seguir a lei de Moisés…
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