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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 4 de dezembro de 2021

“Era um bom homem, o seu António...”

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)

Encostou-se ao beiral da janela a olhar lá para baixo, numa atitude de indiferença face ao infinito mas, simultaneamente, reveladora de vastos, profundos e secretos pensamentos que lhe iam na alma.
Parecia um dia normal, como todos os outros, com o soar dos passos apressados dos transeuntes na calçada da avenida, o buzinar constante dos automobilistas enfadados de engarrafamentos e trânsitos bloqueados, sentidos proibidos espalhados por tudo quanto era sítio, estacionamentos atolados e um ou outro polícia desorientado, no meio da confusão, a soprar avidamente o seu apito, precisamente no local onde menos falta fazia; o vendedor de “banha da cobra” a apregoar mais um novo (ou velho?!!!) produto milagroso no mercado, a quem ninguém prestava atenção e o eco longínquo dos comboios que passavam lá longe, na Estação dos Caminhos de Ferro, com passageiros silenciosos, perdidos na vaga distância de um tempo imparável. Sim, parecia um dia normal como os outros... mas para ela não era!
E não era, precisamente, porque estava ali encostada à janela, a apanhar aquela última réstia de sol cujo brilho ainda lhe aveludava o olhar disperso no horizonte. Um brilho que já fora natural mas que há muito desaparecera... Quando? Sinceramente, nem se lembrava, tantos anos haviam passado! Sim, para ela não era um dia normal, um dia como os outros. Porque ali parada, qual estátua, lhe dera para cismar, sem saber bem porquê, nas antigas “águas passadas que já não movem moínhos”, termo que ela própria costumava utilizar quando, num gesto que procurava ser o mais maternal possível, se dirigia à filha sempre atrapalhada com os seus problemas existenciais.
Estava sozinha em casa naquele final de tarde. Recebera um telefonema apressado da filha a comunicar que “ia jantar com o Raúl” (a sua última conquista depois de um rol de lágrimas e decepções amorosas; uma dor que ela, tão pacientemente, no seu eterno papel de mãe, procurara sempre suavizar com palavras meigas: “Não te preocupes, querida, um dia vai aparecer o homem que tu mereces...”, afirmava com aquele sorriso de mãe que sofre em silêncio as “desgraças” da família).
E assim passara anos, a viver a dor daqueles que amava, a aplacar as suas tristezas, a cuidar da casa, da comida, da roupa, a fazer as “contas à vida” e a sonhar com um futuro sorridente para a única filha com que Deus a abençoara. Assim passara anos... e ela? Encostada à janela, naquele dia, lembrara-se dela! Há tantos anos que não lhe acontecia lembrar-se dela que ficou surpreendida com o pensamento e até um pouco angustiada. É que ao lembrar-se dela, ao fim de tanto tempo, trazia à memória recordações e tristezas nas quais sempre evitara pensar.
E foi quando um barulho de fundo da televisão ligada (para não se sentir tão sozinha), em que um anúncio publicitário fizera alusão ao Dia dos Namorados, a transportou, sem que ela o quisesse para a sua juventude. Uma juventude que não pode deixar de comparar com o presente, através de um “botãozinho dentro da cabeça” que fez girar a fita do filme todo até aquele preciso momento. A sua juventude... sem saber como, uma lágrima rolou-lhe pelo rosto e ela nem sequer se deu ao trabalho de a limpar com a ponta dos dedos, como algumas vezes fazia para o seu António não dar conta de súbitas tristezas que lhe invadiam o coração. Porque ela não podia... era o baluarte da família e chorar em frente ao marido era dar “parte de fraca”!
Ah, o seu António... tantos anos juntos! Era capaz de jurar que, se algum dia a filha se casasse, não ficaria com o marido nem uma terça parte do tempo em que ela e o seu António já estavam juntos... Gostava de acreditar no contrário mas ela via como “as coisas” funcionavam actualmente. A sua Alexandra já tivera tantos namorados e nenhum lhe servira. Por uma razão ou por outra, as relações ainda mal começadas já estavam a terminar no meio de gritos, choros e muitas lágrimas de desânimo não escondidas.
Agora, os jovens já não suportavam nada. Tudo lhes servia de motivo para acabarem de vez com uma relação que parecia ter começado da melhor forma possível, cheia de sonhos para o futuro, com muitos abraços, carinhos e beijos à mistura... e, de repente, puff... o “amor” desaparecia; e “porque o teu feitio não dá com o meu” ou “porque não nos complementamos um ao outro”... terminavam tudo e voltavam a sair... como amigos! Enfim... a verdade é que estas ideias que lhe vieram à cabeça, lhe trouxeram velhas lembranças. E não eram assim tão boas!
Se calhar, a Alexandra até tinha razão. Por que não haveria ela de procurar a felicidade que desejava, encontrar de facto a possível pessoa certa?
Ela não fizera nada disso. Também, a vida e as condições eram outras. Mas casara cega. O António fora o primeiro homem da sua vida. Alto, entroncado, voz grossa, chamara-lhe de imediato a atenção assim que lhe colocara a vista em cima. E ele também pareceu ficar agradado da sua companhia. Daí até ao pedido formal de casamento fora um salto.
E os anos passaram. E ela “morrera” nos seus sentimentos. Ela, que era tão sensível a um carinho de ternura, ela, que era uma rapariga tão romântica e que adorava celebrar momentos especiais e festejar aniversários... ela, que tinha “tudo” dentro dela, não encontrara nada “cá fora”. O seu António nunca lhe oferecera sequer, em todos estes anos de casamento, um único ramo de flores... e o aniversário de casamento... (se calhar, de tanto tempo sem ninguém para o recordar, até ela própria já se esquecera do dia...). A única caixa de bombons que recebera, fora a filha que lha oferecera há três anos atrás quando a fora visitar ao hospital, depois de uma operação às varizes. O seu António estivera emigrado na Alemanha, estivera. Mas as cartas que lhe enviara resumiam-se a meia dúzia de linhas a perguntar pela saúde de todos, com o final certeiro: “Um abraço, António”. Palavras mágicas de cores douradas nunca ela ouvira do marido. E, lentamente, a chama fora-se apagando até cair no hábito da rotina diária.
Era um bom homem, o seu António. Mas matara as suas fantasias de mulher...
Pelo menos, agora, a Alexandra, embora não ficasse muito tempo com alguém podia, no entanto, levar sempre na lembrança (um dia, quando chegasse à idade da mãe) algumas palavras mágicas que lhe faziam “saltar” o coração, e a certeza de que alguém se tinha aproximado dela, pelo menos no Dia dos Namorados, a convidara para jantar e que até era capaz de lhe oferecer uma flor e de lhe dizer: “amo-te”.

Paula Freire - Psicologia de formação, fotografia e arte de coração. Com o pensamento no papel, segue as palavras de Alberto Caeiro, 'a espantosa realidade das coisas é a minha descoberta de todos os dias'.

1 comentário:

  1. Paula.
    Muito obrigado pela tua preciosa colaboração.
    Um texto belíssimo e emotivo que ilustra de uma maneira sublime este "Dia dos Namorados".

    Henrique

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