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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

A NECESSIDADE

I

Ainda hoje existe, junto à confluência de dois rios, um formoso castanheiro, a cuja sombra eu me sento, sempre que por ali passo, haja ou não haja calor, e isto pela razão muito natural de que, sendo eu criança, costumávamos sentar-nos, minha mãe e eu, à sombra daquela mesma árvore, quando íamos a uma aldeiazinha, que ficava perto da nossa. A pequena Distância do castanheiro vêem-se ainda as ruínas de um moinho, tais quais eram nos tempos saudosos da minha infância; e a lembrança de minha mãe, do castanheiro e das ruínas, faz-me recordar de um conto, que ela me contou, em uma tarde de verão, ao pé da árvore frondosa, a cuja sombra, graças a Deus! ainda posso sentar-me.

O último moleiro, que habitou o moinho, era conhecido naquelas redondezas pelo apelido de Sêneca; e vejam lá, não vão mudar para o primeiro o acento que pus sobre o segundo “e” deste apelido, pois que o moleiro de quem estou falando, e que minha mãe conheceu e tratou, era tão modesto, que ainda hoje no céu se veria muito aflito e contrariado, se o confundissem com o filósofo cordovez.

Não tinha Sêneca pretensões a filósofo, mas era-o até sem querer, e a isto devia ele indubitavelmente o seu apelido, em cuja aplicação não podemos deixar de reconhecer uma filosofia muito profunda; se não, reparem os leitores, e digam-me se não é bem admirável a do povo, que, com a mudança de um simples acento, marca o abismo, que separa o filósofo da natureza do filósofo do estudo! Tinha eu que fazer, se quisesse referir os muitos rasgos de engenho e sã filosofia com que Sêneca ilustrou a sua trabalhosa e modesta vida, e portanto limitar-me-ei a referir um dos que mais Cativaram minha pobre mãe, de quem herdei o gosto que tenho pelas recordações da infância.

II

Sêneca não tinha outra família senão um filho de dez anos, nem outras cavalarias senão um burro de vinte. Morreu-lhe a mulher, que era quem ficava no moinho, curando das moagens, enquanto ele andava com o burro, levando e trazendo foles por aldeias e casais, e o pobre Sêneca viu-se então em graves embaraços, porque os seus ganhos lhe não permitiam tomar uma criada, que substituísse sua mulher no moinho, nem um criado, que o substituísse a ele no transporte dos foles.

 — E como te hás de tu arranjar agora? lhe perguntavam os visinhos, quando o viram viúvo, e sem outro auxílio mais que o do pequeno.

 — Não me dá isso cuidado, respondia Sêneca, não faltará quem me ajude.

— Isso é bom de dizer; mas quem te há de ajudar?

 — Quem?... A Necessidade.

Os visinhos punham-se a rir do bom humor de Sêneca, porém sem compreender o que ele queria dizer na sua.

Uma certa manhã aparelhou Sêneca o burrico, pôs-lhe em cima um saco, que continha quatro alqueires de farinha, e chamando o pequeno, disse-lhe:

 — Rapaz, toma o burro pela arreata, e leva-me esta carga à padaria de Somorrostro.

O pequeno desatou a chorar.

 — Que é lá isso, homem? perguntou-lhe o pai.

 — Que há de ser de mim pelo caminho, se o burro cair, ou se espojar no chão! exclamou o rapazito, sem cessar de chorar.

 — Não te dê isso cuidado, disse Sêneca; se tal acontecer, não faltará quem te ajude a levantar o burro.

 — E quem é que me há de ajudar nessas devezas tão solitárias, que não se encontra por elas viva alma?!

 — Quem? A Necessidade. Se o burro cair, ou se deitar no chão e se não poder erguer, chama pela Necessidade, e verás como logo acode em teu auxílio.

 — Está bem, disse o pequeno, limpando as lágrimas com a manga da jaqueta; e pegando na corda do burro, tomou pela margem do rio, caminho de Somorrostro, que distava uma légua do moinho.

 — Ora, ora, ora! Sempre este Sêneca tem coisas!... diziam os visinhos, ao verem o rapazito com o burro atrás de si. Com que então a Necessidade, com cujo auxílio contava Sêneca, para levar e trazer os foles, era essa pobre criança?!... E o pequeno, quem é que o há de ajudar?

III

Seguia o filho de Sêneca com o seu burro à arreata ao longo dos carvalhais, que assombram as margens do rio, que corre pelo vale profundo, que separa Somorrostro de Galdámez e Sopuerta, quando, ao chegar a um pequeno areal muito suave, fez o burro esta reflexão:

— Ai! que bela cama para eu descansar um pouco!... e então, se eu pudesse soltar esta maldita carga, que me vai amolando as costelas!

E de repente, antes que o pequeno olhasse para traz, estirou-se ao comprido no meio do chão.

 — Ai! minha mãe!... exclamou o rapazinho aterrado; — porque convém saber que em Espanha, e com especialidade na Biscaia, não só aos pequenos como também aos grandes, o primeiro auxílio que lhes ocorre invocar nas maiores aflições, é sempre o de sua mãe, ainda mesmo que já a tenham no céu.

E pegando numa vergasta começou a zurzir o burro sem dor nem piedade; porém o animal, por mais esforços que fazia para se levantar, não o podia conseguir.

Estava já o pequeno quase a chorar, quando se lembrou do conselho, que o pai lhe havia dado, e, em vez de dar largas ao pranto, começou a gritar:

 — Necessidade! Necessidade! faz-me o favor de vir aqui ajudar-me a erguer este burro?!

O pequeno bem olhava para todos os lados, a ver se aparecia a Necessidade, mas não via ninguém. Já cansado de chamar e de esperar pela Necessidade, desatou o arrocho, que prendia o saco ao aparelho do burro, e aliviou-o da carga; em seguida deu-lhe uma vergastada e o animal ergueu-se de um salto. Então o pequeno tomou o burro pelo cabresto, levou-o para junto de uma ribanceira, e rolando o saco até lá, pôde, a muito custo, colocá-lo em cima do animal; apertou-o bem com o arrocho, montou-se sobre a carga, atirou uma pancada ao burro, e prosseguiu no seu caminho, mais alegre que umas páscoas.

Passada uma hora chegava o rapaz ao moinho, cantando e fazendo trotar o seu ginete.

 — Olá, pequeno, disse-lhe o pai, apenas o avistou, como te foi pela tua viagem?

 — Muito mal, meu pai.

 — Então o que te aconteceu, homem?

 — Deitou-se o burro no caminho, e, por mais pancadas que lhe dei, não foi capaz de se levantar.

 — E então o que fizeste?

— Desprendi a carga, levei o burro para o pé de uma ribanceira, fui rolando o saco até lá...

 — Bem, bem, já percebo. Quer isso dizer que chamaste pela Necessidade, não é assim?

 — Chamei, chamei; fartei-me até de chamar; mas não apareceu...

 — Rapaz, disse Sêneca, vê como tu te enganas; — quem te levantou e carregou o burro não foi senão a Necessidade.

Tinha razão Sêneca, e também eu a tenho para dizer aqui que a necessidade presta tanto auxílio e tamanhos benefícios ao homem, que não sei como ainda lhe não deram a cruz de beneficência.

Fonte:
Antônio de Trueba: Contos Escolhidos. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.

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