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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Tradições de Páscoa em Trás-os-Montes

Trás-os-Montes, um amplo território que na atualidade se distribui pelos distritos de Vila Real e Bragança, mantém ainda - resultado de um longo processo de isolamento e de um fraco índice de urbanização -, muitas das tradições que ao longo da sua história se foram cimentando entre as comunidades rurais. A semana que antecede a Páscoa é um bom exemplo das tradições cristãs e pagãs que anualmente se repetem de uma forma cíclica neste território.

Os autos da paixão, a procissão do Senhor dos Passos, as endoenças, as vias-sacras e as queimas do Judas são alguns dos exemplos desses ancestrais hábitos que sobreviveram até aos dias de hoje e que ano após ano se repetem em muitas das nossas localidades. 

Estas seculares tradições cumprem-se todas na semana que medeia entre o “Domingo de Ramos” e o “Sábado de Aleluia”, e são, na sua maioria, manifestações fortemente marcadas por sentimentos religiosos, apesar de estar sempre presente um substrato cultural que as relaciona de uma forma inequívoca com a vertente lúdica e pagã que ainda permanecem arreigadas no seio da cultura destas comunidades rurais.

Os autos da paixão e as vias-sacras são expressões coletivas de fé, de uma fé bem sentida, mas onde ainda moram fortes influências de uma encenação provinda do teatro popular, apesar do sentimento predominante ser o luto e a dor pesarosa pela morte de Jesus Cristo; um luto e uma dor que se exprimem através de tons carregados de roxo e de negro, cores essas que expõem tristeza, melancolia, reflexão, penitência e todo o sentimento de perda e de sofrimento que antecipa o mistério pascal. Em todos os casos são recuperadas as catorze paragens que integram as estações da via sacra, e aldeias há que ainda conservam intactos os cruzeiros que representam cada uma dessas estações. 

É nos autos da paixão que se encontra uma das mais elaboradas expressões do teatro popular. Com uma participação coletiva e efetiva da comunidade, estas representações integram velhos e novos, homens e mulheres, e quase sempre atingem picos de realismo que alguns dos participantes até chegam a parecer figuras saídas do Novo Testamento. Por estes autos passam as narrações dos últimos dias da vida de Jesus Cristo, e neles intervêm personagens como os discípulos, com Judas em primeiro plano, Herodes, Caifaz, Pilatos, Fariseu, Maria Madalena, soldados romanos ou mesmo o Diabo, culminando todas essas encenações na deposição do filho de Deus na cruz. 

Mas o sentimento de perda vivida, sentida e transmitida pela população durante a Semana Santa em Trás-os-Montes tem a sua mais peculiar e enigmática expressão no concelho de Vinhais, uma das localidades da região onde ainda previvem e se registam alguns vestígios das chamadas endoenças. Aqui existe um ritual onde se interpreta e encena a procura e a busca de Nosso Senhor Jesus Cristo, e todos os habitantes das pequenas aldeias se perguntam, uns aos outros, e entre vizinhos e amigos, se “alguém por aí o viu”.
Também em Freixo de Espada à Cinta permanece ainda bem viva e preservada a procissão dos "Sete Passos", uma não menos enigmática manifestação pagã que marca a Semana Santa e cujos contornos deixam transparecer claras influências de uma tradição antiquíssima, com provável origem na época medieval. Desta tradição existe um riquíssimo documento constituído por um filme intitulado “Encomendação das Almas – Sete passos  ”, uma produção de 1979 para a RTP com a realização de Leonel Brito e textos de Rogério Rodrigues.

A partir da meia-noite de sexta-feira santa, uma figura encapuçada de negro, dobrada pelo tronco, circula pelo adro da igreja matriz de Freixo com uma luminária a pender-lhe das mãos, enquanto à porta do templo são entoados cânticos com vozes exclusivamente masculinas. Posteriormente, pelas ruas do Centro Histórico da vila, mais duas dessas figuras, também encapuçadas e vestidas de negro, arrastam objetos de metal num estridente ruído, enquanto, seguindo-os de perto, o mesmo grupo de homens continua a entoar cânticos em diversas paragens pré-estabelecidas, com a figura que transporta a lamparina a encabeçar o cortejo. A procissão pagã dos "Sete Passos" trata-se de um culto aos mortos, um culto a todos os mortos que é entoado na véspera do sábado de aleluia, o dia em que foi anunciada a ressurreição do filho de Deus. 

Já em Mogadouro, a tradição ancora numa essência histórica melhor definida no tempo. A “Procissão dos Passos” é uma das muitas manifestações pascais que durante a época quaresmal se realizam na região do nordeste transmontano. O Senhor dos Passos de Mogadouro é uma manifestação religiosa com contornos vincadamente históricos que se realiza de dois em dois anos nesta vila transmontana. Segundo alguns investigadores, surgiu pela mão de Luís Alvares Távora, Senhor de Mogadouro, que deu o impulso, em 1559, para a criação da Confraria da Igreja da Misericórdia. A procissão sai da igreja da Misericórdia e segue até ao convento de S. Francisco que se situa no fulcro urbano da localidade. O cortejo é de matriz marcadamente religioso, mas mantém contornos etnográficos que remontam ao séc. XVII. 

Num campo mais lúdico há a registar as “queimas de judas”, manifestações festivas e de algum excesso que marcam o fim de um tempo de restrições e penitência que foram impostas durante o período da quaresma.Em Constantim, uma aldeia localizada às portas da cidade de Vila Real, renasceu há alguns anos pelas mãos dos habitantes da localidade um destes costumes antigos que esteve muito tempo adormecido. A Queima de Judas, o traidor, é realizada na noite de sábado de aleluia, véspera do domingo de Páscoa, e reúne dezenas de pessoas num cortejo constituído por várias figuras que transportam tochas acesas pelos arruamentos da aldeia, vindo depois toda a representação a culminar na praça principal, num cenário dantesco, onde Judas é queimado entre gritos e risos de escárnio, numa representação que dizem “teatralizar a vingança do povo contra Judas que traiu Jesus”. 

O mesmo espirito tem a “Queima de Judas em Montalegre”, também realizada no “Sábado de Aleluia”. O município constitui anualmente um concurso com inscrições prévias para incentivo geral da população e com o intuito de manter viva a tradição.
Nestes meios rurais mantém-se ainda o hábito de ao meio dia de quinta-feira santa tocar o sino a finados, o que significa o anúncio simbólico da morte de Cristo. A partir desse momento todas as pessoas abandonam os seus afazeres agrícolas e regressam a casa para cumprir o “dia santo de guarda”, permanecendo sem trabalhar, e muitas delas em jejum, até ao meio dia de sexta-feira. 

Em outras localidades só no “Sábado de Aleluia”, à meia-noite, se volta a tocar os sinos das igrejas. Este ato radica numa tradição muito ancestral já relatada nos inícios do séc. XX por Francisco Manuel Alves, o prestigiado historiador, antropólogo e arqueólogo transmontano, na sua obra “Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança”. Segundo essa tradição, “a bênção para o que repica os sinos na noite de Páscoa da Ressurreição, toda passada em toques festivos de sinos, consiste em ser muito feliz no encontro de ninhos de aves com pássaros”. Mas o toque do sino assegura um significado de maior relevância para estas comunidades. Ele significa o fim da tristeza, do silêncio, das restrições e do luto e anuncia um novo tempo de alegria, de vida, de ressurgimento, de renovação, de esperança, de felicidade e de uma outra vida que se espiritualiza e interioriza através do exemplo da Ressurreição de Jesus Cristo e da sua perpetuação através da vida eterna. 

A meia-noite do sábado de aleleuia é portanto a hora simbólica que marca o arranque das festividades do dia de Páscoa, dia assinalado pelo encontro de famílias, pelo ritual eucarístico e pela convivialidade e confraternização que se faz à volta mesa. Gastronomicamente a Páscoa está associada a manjares como o folar, o borrego ou o cabrito assado, e no domínio religioso pela tradição do Compasso. 

Como refere Ernesto Veiga de Oliveira no seu livro “Festividades Ciclicas em Portugal”, “no Nordeste montanhoso e planáltico de Trás-os-Montes, o folar é uma bola redonda, em massa dura, feita com farinha, ovos, leite, manteiga e azeite, que encerra bocados de carne de vitela, frango, coelho, porco, presunto e rodelas de salpicão, cozidos dentro de massa, que junto deles fica mais tenra com a gordura que deles se desprende. Por seu turno, estes folares, podem ser, segundo as regiões, grandes e altos, em massa fresca (Bragança), ou achatados e pequenos, em massa seca, (Freixo de Espada à Cinta). Cozem-se geralmente em grande número, e continua-se a comê-los mesmo passada a Páscoa, sendo especialmente próprios para levar de merenda”. 

Muitos destes folares continuam a ser feitos em casa, no forno a lenha onde normalmente se cozia o pão, mas também nas padarias locais que neste período alugam os fornos especificamente para cozer a massa dos folares. Ainda no domínio da gastronomia, o cabrito assado está a substituir o cordeiro ou o borrego, embora não há muitos anos estes constituíssem o prato típico que estava por absoluto generalizado no almoço de todas as famílias no domingo de Páscoa. O cordeiro, símbolo da Páscoa Cristã, assumia aí também uma dimensão e um sentido de comunhão, uma vez que personificava Cristo, o filho e cordeiro de Deus que foi sacrificado para remissão dos pecados de toda a humanidade. 


Mas o dia de Páscoa, na maior parte das aldeias, vilas e cidades da região fica sobretudo marcado pela alegria da visita pascal - o chamado Compasso. Algumas excepções se registam como, por exemplo, em Macedo de Cavaleiros, onde a visita pascal se realiza na segunda-feira seguinte. Num número reduzido de aldeias ou lugares a visita do Compasso pode ser transferida para o domingo imediatamente a seguir à Páscoa, surgindo assim o domingo de Pascoela como habitualmente é designado pelos transmontanos. 

O Compasso nada mais é do que um grupo de paroquianos que leva à frente o padre numa visita a todas as casas onde é dada a beijar uma cruz com Cristo crucificado. Neste ritual o pároco entra nas casas de todos os fiéis e benze-a com água benta, enquanto é anunciada por todos a boa nova da Ressureição de Cristo: “Aleluia, aleluia, Jesus Cristo Ressuscitou!”. 

Nesta cerimónia, recorda-nos Ernesto veiga de Oliveira, “o padre, de sobrepeliz e estola, precedido dos membros da confraria ou paróquia, de opa, e levando o crucifixo, a campainha e a caldeirinha, corre a freguesia a levar aos paroquianos a Boa Nova e a bênção pascal e a tirar o folar. O padre entra nas casas cuidadas e embelezadas e, com a saudação tradicional dá a cruz a beijar a todos os presentes que seguem o «compasso» e que se reúnem e ajoelham na sala principal em redor da melhor mesa da casa que está coberta com uma toalha de linho rendada, ao lado do crucifixo, dos castiçais, de jarras floridas e de um pires ou de uma taça com o «folar», geralmente um envelope com dinheiro dentro”.

Luís Pereira

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