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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Eça de Queirós: "Memórias de uma Forca"

 Foi por um modo sobrenatural que eu tive conhecimento deste papel, onde  uma pobre forca apodrecida e negra dizia alguma coisa da sua história. Esta  forca  intentava  escrever  as suas trágicas Memórias.  Deviam ser profundos  documentos  sobre a  vida.  Árvore,  ninguém sabia  tão bem o  mistério da  natureza; forca, ninguém conhecia melhor o homem. Nenhum tão espontâneo  e verdadeiro como o homem que se torce na ponta de uma corda — a não ser  aquele que lhe carrega sobre os ombros!  Infelizmente,  a  pobre forca  apodreceu e morreu.

Entre os apontamentos que deixou, os menos completos são estes que copio  — resumo das suas dores, vaga aparência de gritos instintivos. Pudesse ela ter  escrito  a  sua  vida  complexa,  cheia  de  sangue e de melancolia!  É tempo  de  sabermos,  enfim,  qual é  a  opinião que  a  vasta  natureza,  montes,  árvores  e  águas, fazem do homem impercetível. Talvez este sentimento me leve ainda  algum dia a publicar papéis que guardo avaramente, e que são as Memórias de  um Átomo e os Apontamentos de Viagem de Uma Raiz de Cipreste.  

Diz assim o fragmento que eu copio — e que é simplesmente o prólogo das  Memórias:

"Sou  de  uma  antiga família  de  carvalhos,  raça  austera  e forte —  que já  na  Antiguidade deixava cair, dos seus ramos, pensamentos para Platão. Era uma  família  hospitaleira e  histórica: dela tinham saído navios para  a  derrota  tenebrosa das índias, contos de lanças para os alucinados das Cruzadas, e vigas  para  os tetos  simples  e perfumados  que abrigaram Savonarola,  Espinosa  e  Lutero.  O  meu pai,  esquecido das altas tradições sonoras e da  sua heráldica  vegetal,  teve  uma  vida  inerte,  material e profana.  Não respeitava  as nobres  morais antigas, nem a ideal tradição religiosa, nem os deveres da história. Era  uma  árvore materialista.  Tinha sido  pervertida  pelos enciclopedistas  da  vegetação.  Não tinha  fé,  nem alma,  nem Deus! Tinha  a  religião do Sol,  da  seiva  e da  água.  Era  o grande libertino  da  floresta  pensativa.  No Verão,  enquanto sentia a fermentação violenta das seivas, cantava movendo-se ao sol,  acolhia  os grandes  concertos  de pássaros boêmios,  cuspia  a  chuva sobre o  povo curvado  e  humilde  das  ervas e das plantas  e,  de noite,  enlaçado pelas  heras lascivas, ressonava sob o silêncio sideral. Quando vinha o Inverno, com  a passividade animal de um mendigo, erguia, para a impassível ironia do azul,  os seus braços magros e suplicantes!

"Por isso nós os seus filhos, não fomos felizes na vida vegetal. Um dos meus  irmãos foi  levado para  ser tablado de palhaços: ramo contemplativo  e  romântico, ia, todas as noites, ser pisado pela chufa, pelo escárnio, pela farsa e  pela fome! O outro ramo, cheio de vida, de sol, de poeira, áspero solitário da  vida, lutador dos ventos e das neves, forte e trabalhador, foi arrancado dentre  nós, para ir ser tábua de esquife! — Eu, o mais lastimável, vim a ser forca!

"Desde pequeno fui  triste  e compassivo.  Tinha grandes  intimidades  na  floresta. Eu só queria o bem, o riso, a dilatação salutar das fibras e das almas. O orvalho de que a noite me banhava, atirava-o a umas pobres violetas, que  viviam por debaixo de nós, doces raparigas lutuosas, melancolias condensadas  e vivas da grande alma silenciosa da vegetação. Agasalhava todos os pássaros  na  véspera  dos  temporais.  Era  eu quem asilava  a  chuva.  Ela  vinha,  com os  cabelos  esguedelhados,  perseguida,  mordida,  retalhada  pelo vento!  Eu abria-lhe  as ramagens  e  as  folhas,  e  escondia-a  ali,  ao calor  da  seiva.  O  vento  passava,  confundido  e imbecil.  Então  a  pobre  chuva,  que  o via  longe,  assobiando lascivo,  deixava-se  escorregar silenciosamente  pelo tronco,  gota  por gota, para  o vento a  não perceber;  e  ia,  de rastos,  por entre  a  erva,  acolher-se  à  vasta  mãe Água!  Tive por  esse  tempo  uma  amizade  com um  rouxinol, que vinha conversar comigo durante as longas horas consteladas do  silêncio. O pobre rouxinol tinha uma pena de amor! Tinha vivido num país  distante, onde os noivados têm mais moles preguiças: lá se enamorara: comigo  chorava  em suspiros  líricos.  E  tão mística  pena  era que me  disseram que  o  triste,  de dor e  de desesperança,  se  deixara  cair  na  água!  Pobre rouxinol!  Ninguém tão amante, tão viúvo e tão casto!

"Eu queria  proteger todos os  que vivem.  E quando as raparigas do campo  vinham para  junto  de mim chorar,  eu erguia  sempre  as minhas ramagens, como dedos, para apontar à pobre alma aflita de lágrimas todos os caminhos  do Céu!

"Nunca mais! Nunca mais, verde juventude distante!

"Enfim, eu tinha de entrar na vida da realidade. Um dia, um daqueles homens  metálicos que  fazem o tráfico da  vegetação, veio arrancar-me à  árvore.  Não  sabia eu o que me queriam. Deitaram-me sobre um carro e, ao cair da noite,  os  bois começaram  a  caminhar,  enquanto  ao lado  um  homem  cantava  no  silêncio  da  noite.  Eu  ia  ferido e desfalecido.  Via  as estrelas  com os seus  olhares lancinantes  e  frios.  Sentia-me separar da  grande floresta.  Ouvia  o  rumor  gemente,  indefinido  e arrastado das  árvores.  Eram  vozes amigas que  me chamavam!

"Por cima de mim voavam aves imensas. Eu sentia-me desfalecer, num torpor  vegetal,  como se  estivesse  sendo dissipado na  passividade  das coisas.  Adormeci. Ao amanhecer, íamos entrando numa cidade. As janelas olhavam- me com olhos ensanguentados e cheios de um  sol irado. Eu só conhecia as  cidades pelas histórias que delas contavam as andorinhas, nos serões sonoros  da  espessura.  Mas como ia  deitado e amarrado com cordas,  apenas via  os  fumos e um  ar opaco.  Ouvia  o rumor  áspero  e desafinado,  onde havia  soluços, risos, bocejos, e mais o surdo roçar da lama, e o tinido sombrio dos  metais. Eu sentia enfim o cheiro mortal do homem! Fui arremessado para um  pátio infecto, onde não havia o azul e o ar. Comecei então a compreender que   uma grande imundície cobre a alma do homem, porque ele se esconde tanto   das vistas do Sol! 

"Uns homens vieram, que me deram desprezivelmente com os pés. Eu estava  num estado de torpor e de materialidade, que nem sentia as saudades da pátria  vegetal.  Ao outro dia,  um  homem veio para  mim e deu-me  golpes de  machado. Não senti mais nada. Quando voltei a mim, ia outra vez amarrado  no  carro,  e pela  noite um homem aguilhoava  os  bois,  cantando.  Senti lentamente  renascer a  consciência  e  a  vitalidade. Parecia-me que eu estava  transformado numa outra vida orgânica. Não sentia a magnética fermentação  da seiva, a energia vital dos filamentos e a superfície viva das cascas. Em redor  do carro iam outros homens, a pé. Sob a brancura silenciosa e compassiva da  Lua, tive uma saudade infinita dos campos, do cheiro dos fenos, das aves, de  toda a grande alma vivificadora de Deus, que se move entre a ramagem. Eu  sentia  que ia  para  uma  vida real,  de serviço e de trabalho.  Mas qual?  Tinha  ouvido falar das árvores,  que vão ser  lenha,  aquecem e  criam,  e,  tomando  entre a convivência do homem a nostalgia de Deus, lutam com os seus braços  de chamas para  se  desprender  da  terra:  essas dissipam-se  na augusta  transfiguração do fumo, vão ser nuvens, ter a intimidade das estrelas e do azul,  viver na serenidade branca e altiva dos imortais, e sentir os passos de Deus!

"Eu tinha ouvido falar das que vão ser vigas da casa do homem: essas, felizes  e privilegiadas, sentem na penumbra amorosa a doce força dos beijos e dos  risos;  são amadas,  vestidas,  lavadas;  encostam-se  a  elas os  corpos  dolorosos  dos Cristos,  são os pedestais da  paixão humana,  têm a  alegria  imensa  e  orgulhosa dos que protegem; e risos das crianças, ais namorados, confidências,  suspiros, elegias da voz, tudo o que lhes faz lembrar as murmurações da água,  o estremecimento das folhas, as cantigas dos ventos — toda essa graça escorre  sobre elas, que já gozaram a luz da matéria, como uma imensa e bondosa luz  da alma.

"Eu tinha ouvido falar também das árvores  de bom destino,  que vão ser  mastro de navio, sentir o cheiro da maresia e ouvir as legendas do temporal,  viajar,  lutar,  viver,  levadas pelas águas,  através do infinito,  entre surpresas  radiosas — como almas arrancadas do corpo que fazem pela primeira vez a  viagem do Céu!

"Que iria eu ser?..  — Chegamos. Tive então a visão real do meu destino. Eu ia ser forca!

"Fiquei inerte,  dissolvida  na  aflição.  Ergueram-me.  Deixaram-me só,  tenebrosa, num campo. Tinha, enfim, entrado na realidade pungente da vida.  O  meu destino era  matar.  Os homens,  cujas mãos andam sempre cheias de  cadeias, de cordas e de pregos, tinham vindo aos carvalhos austeros buscar um  cúmplice!  Eu ia  ser a  eterna  companheira  das agonias.  Presos a  mim, iam  balouçar-se os cadáveres, como outrora as verdes ramagens orvalhadas!  

"Eu ia dar esses negros frutos: os mortos!  

"O  meu orvalho seria de sangue.  Ia  escutar  para  sempre,  eu a  companheira  dos pássaros,  doces  tenores  errantes,  as agonias soluçantes,  os  gemidos de  sufocação! As almas ao partir, rasgar-se-iam nos meus pregos. Eu, a árvore do  silêncio  e do mistério  religioso,  eu, cheia  de augusta alegria  orvalhada  e dos  salmos sonoros da vida, eu, que Deus conhecia por boa consoladora, havia de  mostrar-me às nuvens, ao vento, aos meus antigos camaradas puros e justos,  eu, a árvore viva dos montes, de intimidade com a podridão, de camaradagem  com o  carrasco, sustentando alegremente um cadáver pelo pescoço, para os  corvos o esfarraparem!

"E isto  ia ser!  Fiquei hirta  e impassível como nas nossas florestas os  lobos,  quando se sentem morrer.

"Era a aflição. Eu via ao longe a cidade coberta de névoa.

"Veio o sol. Em roda de mim começou a juntar-se o povo. Depois, através de  um  desfalecimento,  senti o ruído de músicas tristes,  o rumor  pesado dos  batalhões,  e os  cantos  dolentes dos  padres.  Entre dois círios,  vinha um  homem lívido.  Então,  confusamente,  como  nas aparências inconscientes do  sonho, senti um  estremecimento, uma  grande vibração elétrica,  depois a  melodia monstruosa e arrastada do canto católico dos mortos!

"Voltou-me a consciência.

"Estava só. O povo dispersava-se e descia para os povoados. Ninguém! A voz  dos padres descia lentamente, como a última água de uma maré. Era o fim da  tarde. Vi. Vi livremente. Vi! Dependurado de mim, hirto, esguio, com a cabeça  caída e deslocada, estava o enforcado! Arrepiei-me!  

"Eu sentia  o frio e  a  lenta  ascensão da  podridão.  Ia  ficar  ali,  de noite,  só,  naquele descampado sinistro, tendo nos braços aquele cadáver! Ninguém!  

"O sol ia-se, o sol puro. Onde estava a alma daquele cadáver? Tinha passado  já? Tinha-se dissipado na luz, nos vapores, nas vibrações? Eu sentia os passos  tristes da noite, que vinha. O vento empurrava o cadáver, a corda rangia.  

"Eu tremia, numa febre vegetal, dilacerante e silenciosa. Não podia ficar ali só.  O vento levar-me-ia, atirando-me, aos pedaços, para a antiga pátria das folhas.  Não. O vento era brando: quase somente a respiração da sombra! Tinha vindo  então o tempo em que a grande natureza, a natureza religiosa, era abandonada  às feras humanas? Os carvalhos já não eram, pois, uma alma? Podiam, com  justiça,  vir o machado e as cordas buscar os  ramos  criados pela  seiva,  pela  água e pelo sol, trabalho suado da natureza, forma resplandecente da intenção  de Deus,  e levá-los  para  as impiedades,  para  os tablados  da  forca  onde  apodrecem as almas,  para  os  esquifes  onde apodrecem os  corpos? E as  ramagens  puras,  que foram testemunhas  das religiões,  já  não serviam senão  para  executar as penalidades  humanas?  Serviam só  para  sustentar as cordas, onde os saltimbancos bailam, e os condenados se torcem? Não podia ser.  

"Pesava  sobre a  natureza  uma  fatalidade infame.  As almas dos mortos,  que  sabem o segredo e compreendem a  vegetação,  achariam grotesco que as  árvores, depois de terem sido colocadas por Deus na floresta com os braços  estendidos, para abençoar a terra e a água, fossem arrastadas para as cidades, e  obrigadas,  pelo homem,  a  estender o braço  da  forca  para  abençoar os  carrascos!

"E  depois de  sustentarem os ramos de verdura que são  os fios  misteriosos,  mergulhados no azul,  por onde  Deus prende a  terra  —  fossem sustentar as  cordas da  forca,  que são as fitas infames,  por onde o homem se  prende à  podridão! Não! se as raízes dos ciprestes contassem isto em casa dos mortos  — faziam estalar de riso a sepultura!

"Assim falava eu na solidão. A noite vinha lenta e fatal. O cadáver balouçava-se ao vento. Comecei a sentir palpitações de asas. Voavam sombras por cima  de mim.  Eram  os corvos.  Pousaram.  Eu  sentia  o roçar das suas  penas  imundas; afiavam os bicos no meu corpo; penduravam-se, ruidosos, cravando-me as garras.

"Um pousou no cadáver  e pôs-se a  roer-lhe a  face!  Solucei  dentro  de  mim.  Pedi a Deus que me apodrecesse subitamente. Era uma árvore das florestas a  quem os ventos falavam! Servia agora para afiar os bicos dos corvos, e para  que os  homens dependurassem de  mim  os cadáveres, como vestidos  velhos  de carne, esfarrapados! Oh! meu Deus! — soluçava eu ainda — eu não quero  ser relíquia  de tortura:  eu alimentava,  não  quero  aniquilar:  era  a  amiga do  semeador,  não  quero  ser a  aliada  do coveiro!  Eu não  posso e não sei  ser a  Justiça.  A  vegetação tem uma  augusta  ignorância:  a  ignorância  do  sol,  do  orvalho e dos astros. Os bons, os angélicos, os maus são os mesmos corpos  invioláveis,  para  a  grande natureza  sublime e compassiva.  Ó  meu Deus,  liberta-me deste mal humano tão aguçado e tão grande, que se traspassa a si,  atravessa de lado a lado a natureza, e ainda te vai ferir, a ti, no Céu! Oh! Deus,  o céu azul, todas as manhãs, me dava os orvalhos, o calor fecundo, a beleza  imaterial e fluida da brancura, a transfiguração pela luz, toda a bondade, toda a  graça, toda  a  saúde:  —  não queiras que,  em compensação,  eu  lhe mostre,  amanhã, ao seu primeiro olhar, este cadáver esfarrapado!  

"Mas Deus dormia,  entre os seus paraísos  de luz. Vivi três  anos nestas  angústias.

"Enforquei  um  homem —  um  pensador,  um  político,  filho do  Bem e da  Verdade,  alma  formosa  cheia  das formas do ideal,  combatente da  Luz.  Foi  vencido, foi enforcado.

"Enforquei um homem que tinha amado uma mulher e tinha fugido com ela.  O  seu crime era  o amor,  que Platão chama mistério,  e Jesus chamou lei.  O  código puniu a fatalidade magnética da atração das almas, e corrigiu Deus com  a forca!

"Enforquei  também um  ladrão.  Este  homem era  também  operário. Tinha  mulher, filhos, irmãos e mãe. No Inverno não teve trabalho, nem lume, nem  pão. Tomado de um desespero nervoso, roubou. Foi enforcado ao Sol-posto.  Os corvos não  vieram.  O  corpo foi para a  terra limpo, puro  e são. Era um  pobre corpo que tinha sucumbido por eu o apertar de mais,  como a  alma  tinha sucumbido por Deus a alargar e a encher.

"Enforquei  vinte.  Os  corvos  conheciam-me.  A natureza  via  a  minha  dor  íntima;  não me desprezou; o Sol  iluminava-me com glorificação,  as nuvens  vinham arrastar por mim a  sua  mole nudez,  o vento falava-me  e contava  a  vida da  floresta,  que eu tinha deixado,  a  vegetação saudava-me com meigas  inclinações da folhagem: Deus mandava-me o orvalho, frescura que prometia  o perdão natural.

"Envelheci.  Vieram as rugas escuras.  A grande vegetação,  que  me sentia  esfriar,  mandou-me os seus vestidos  de hera.  Os corvos  não voltaram: não  voltaram os carrascos. Sentia em mim a antiga serenidade da natureza divina.  As eflorescências, que tinham fugido de mim, deixando-me só no solo áspero,  começaram a  voltar,  a  nascer,  em roda de mim,  como amigas  verdes e  esperançosas.  A  natureza parecia  consolar-me.  Eu sentia chegar  a  podridão.  Um dia  de névoas e de ventos,  deixei-me cair tristemente no chão,  entre  a  relva e a humidade, e pus-me silenciosamente a morrer.  

"Os musgos  e  as relvas cobriam-me,  e  eu comecei  a  sentir-me dissolver  na  matéria enorme, com uma doçura inefável.  

"O corpo esfria-me: eu tenho a consciência da minha transformação lenta de  podridão em terra. Vou, vou. Ó terra, adeus! Eu derramo-me já pelas raízes.  Os átomos fogem para toda a vasta natureza, para a luz, para a verdura. Mal  ouço  o  rumor  humano.  Ó  antiga Cíbele,  eu vou escorrer na circulação  material do teu corpo! Vejo ainda indistintamente a aparência humana, como  uma  confusão de ideias,  de desejos,  de desalentos,  entre os  quais passam,  diafanamente,  bailando, cadáveres! Mal  te vejo, ó mal humano! No meio da  vasta  felicidade difusa  do azul, tu  és,  apenas,  como  um  fio de  sangue!  As  eflorescências, como vidas esfomeadas, começam a pastar-me! Não é verdade  que ainda  lá  em baixo,  no poente,  os  abutres  fazem o inventário  do corpo  humano?  ó matéria, absorve-me!  Adeus!  para  nunca  mais,  terra  infame e  augusta! Eu vejo já os astros correrem como lágrimas pela face do céu. Quem  chora  assim? Eu sinto-me desfeita na  vida  formidável  da  terra!  ó mundo  escuro, de  lama e de ouro,  que és um  astro no infinito — adeus! adeus!  —  deixo-te herdeiro da minha corda podre!" 

Nota:
Texto-fonte: Conto de Eça de Queirós, obra póstuma publicada em 1902

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