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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 2 de março de 2021

D. João da Câmara: "As Mães"

 O sol despedia os raios mais vividos, O suão aquecido nas cinzas das queimadas soprava abrasador. Via-se tudo em volta como. através de vidros amarelos.

O caminho era ruim, apenas indicado por velhos muros afogados em silvas e cheios  e musgo como ferrugem, que lindavam as tapadas. No meio da estrada erguiam-se de espaço a espaço enormes penedos, que ainda conservavam os furos das brocas, mostrando um trabalho abandonado de um dia para outro, falta de dinheiro, alguma eleição perdida. Massas enormes de granito esbranquiçado erguiam-se de uma e outra banda, umas por cima das outras, acasteladas. Por entre as pedras cresciam as giestas sequiosas, cujo fruto crepitava abrindo-se aos beijos do sol e deixava cair a semente na terra. Nos pontos mais elevados ressaíam do trêmulo azul celeste uns carvalhos raquíticos e tortos, que não davam sombra.

Ele caminhava alegre, estrada afora, parando de vez em quando para escolher nos cachos das amoras, que reluziam ao sol, as menos maduras, avermelhadas, rijas, cujo ácido lhe mitigava a sede.

Ainda vinha com o seu bigode, com as calças de linho e as botas pretas de soldado, em que brilhavam como lantejoulas os pedacinhos de mica do granito desfeito.

O gosto com que ele diria lá na terra ao Antônio — “Deite-me isto abaixo, ó mestre, e talhe-me nesta cara uma suíça como a que eu tinha antes e a tinha meu pai que Deus haja”.

E passava a unha pela cara, satisfeito, marcando a suiça que havia de usar.

O gosto com que atiraria para o lado aquelas botas engraxadas, a mortificarem-lhe os pés e que, apesar do bom tamanho, lhe pareciam botas de senhora, boas, quando muito, para o domingo, quando fosse à missa. As botas altas, brancas, de bom salto de prateleira muito cômodo e tão bom para andar, lá tinham ficado penduradas num prego, defronte da lareira, muito bem ensebadas e recomendadas. Tinham umas tombas, é verdade, mas eram botas amigas. Como havia de calçá-las, contente, para sair com elas para o trabalho, quando vem rompendo a aurora, quando o céu é cheio de luz e ainda não há sombras na terra!

Ia morto por voltar aos hábitos velhos, à santa vida do campo.

Lembrava-se, cheio de saudades, das boas histórias, que se contam pela estrada afora, na volta do trabalho, caminhando lentamente atrás dos burros, que, de orelhas muito caídas, projetam na alvura da poeira sombras de gigantes.

O que hão de rir os ganhões com as histórias novas que ele traz do quartel!

Quase ao chegar á vila, ao pé da volta da estrada, um nadinha para baixo, à direita, é a fonte. Quando ali se chega, grita-se chó! aos burros, pára-se um bocado a conversar e contende-se com as raparigas que passam de bilhas á cabeça, bem aprumadas, de ancas fortes e caras sadias, com uns fios de dentes, que o pão de centeio torna muito brancos, como folhinhas de malmequeres, e que elas gostam muito de mostrar, abrindo em grandes risos, por qualquer dichote amável, as bocas muito vermelhas, mais frescas e perfumadas que uma ginja.

Aquele bocado de tempo era sempre o melhor do dia.

E, ao pensar na fonte, alargou o passo.

É coisa aborrecida estar de sentinela duas horas, uma noite de inverno. E a água pela valeta a correr, barrenta, cheia de espuma, precipitando-se na sarjeta, com Uma bulha muito triste, muito monótona, tão diferente do estrépito das ribeiras quebrando as águas nos rochedos das voltas!

Ele pensava na fonte e nos tais lábios vermelhos. E o tempo assim lá passava mais depressa.

Um outro, às vezes, tão triste como ele talvez, gritava- lhe de uma guarita perdida na treva:

— Sentinela, alerta!

E ele respondia, engrossando a voz:

— Alerta está!... Sentinela alerta!

E, enquanto os gritos repetidos se iam perdendo ao longe, recaía no mesmo pensar constante, a fonte, sempre a fonte, e triste, sempre triste.

Mas afinal estava livre! Naquela mesma tarde, à hora em que as chaminés começam fumegando e debaixo das parreiras, enquanto a ceia aquece, se toca alegremente nas buzinas, estaria batendo à porta de casa, disfarçando a voz, fingindo ser um pobrezinho a pedir esmola e agasalho.

E ria feliz com aquela idéia divertida.

A alegria da mãe! Era capaz de morrer de gosto a pobre velha, coitadinha!

Sabe Deus, quantas vezes, quando ele pelas madrugadas frias tremia enregelado na guarita, não molhava ela com lágrimas o travesseiro, a chorar a sua pobreza.

Recebera duas cartas dela muito ternas, cheias de notícias e de conselhos. Pedia a todos que lhas lessem e por fim sabia-as de cor; trazia-as sempre consigo entre a fardeta e a camisa, metidas num saquinho de couro, para não se estragarem.

E, ao lembrar-se de que afinal o tempo, de que tantas saudades tivera, ia novamente voltar, enchia-se-lhe a alma de alegria, e caminhava ligeiro, cantando em voz de falsete uma cantiga de S. João.

Ainda lhe faltavam três léguas para chegar a casa.

Aqueles sítios já eram dele muito conhecidos. Lembrava-se perfeitamente de que, por detrás daquelas pedras, que lhe ficavam à esquerda, crescia basta a erva, regada pela água de uma fontezita, onde, por mais de uma vez, de madrugada, quando ali andava guardando as cabras da viúva, viera armar aos passarinhos.

Não havia sítio melhor para descansar um bocado.

No fardel trazia um pedaço de pão e o conduto, meia dúzia de azeitonas e um queijinho pequeno.

É  comer! E, se nos der o sono, dorme-se uma sesta até que abrande o calor!

Saiu da estrada galgando a parede e encaminhou-se para a fonte, pondo em fuga as cotovias, muito mansas, muito alegres, que saltitavam nas pedras, enquanto muito alto, parecendo pontos negros no azul do céu, umas poucas de águias descreviam curvas enormes, com a mira num burro morto, que apodrecia entre os rochedos.

***

Quando acordou, já o sol descera muito; o vento tinha virado para o norte e algum tanto abrandara o calor.

Do outro lado do cabeço, ouvia-se um som de chocalhinhos. Eram as cabras da viúva, que andavam pastando. No alto, donde a propriedade se descobria quase toda, um pastorito de dez anos, deitado sobre as pedras, com o chapéu de abas largas, todo roto, a servir-lhe de travesseiro, fazia dançar um bogalho na ponta esmagada de uma palha de centeio, por onde soprava.

Sensibilizou-o tal recordação da infância, que ali passara como aquele pequeno.

— Adeus, á cachopinho! — gritou.

— Saúde! — respondeu o pequeno.

Teria dormido duas horas e achava-se completamente descansado. Ergueu-se, espreguiçou-se, coçou desesperada- mente a cabeça, bateu com os pés no chão para desentorpecer as pernas e por fim, agarrando no chapéu e no bordão, pôs-se alegremente a caminho.

Como por ali não havia vinhas, e isto era no mês das vindimas, não encontrara ninguém por aqueles sítios, abandonados até ao tempo das sementeiras.

Caminhava depressa, batendo com o bordão nas pedras, querendo chegar a casa antes do anoitecer.

Faltava-lhe ainda quase uma légua, quando o sol se escondeu.

As calhandras tinham erguido o vôo e trinavam doidamente, muito alto, constantes no mesmo lugar, batendo muito as asas.

Chegou a uma encruzilhada e parou. Parecia estar em dúvida sobre o caminho que havia de tomar. Passava a mão pela cara, devagarinho, sem se resolver. O caminho da esquerda parecia tentá-lo muito, sorria-se para ele, mas como quem tem medo de ceder à tentação.

E que tentação não era!... Se nunca mais vira uns olhos daquele azul!

A pobre mãe, àquelas horas, sentada à porta de casa, cruzadas sobre os joelhos as mãos, onde umas veias em relevo ressaem sobre uma rede confusa de rugas pequeninas, pensava nele talvez cheia de amor e de quantas tristezas! Quem passava por defronte da porta tirava o chapéu àqueles cabelos brancos, muito bem alisados por debaixo do lenço negro da viúva. Naqueles olhos meio apagados brilhavam talvez as lágrimas duma saudade... E ele parado ali.., cheio de dúvidas!

Seguindo sempre em frente, mal chegasse ao alto, veria na encosta fronteira a casa onde nascera, muito caiada, com a cimalha pintada de azul, a porta verrfielha, a nogueira a que se encosta a vide cheia de cachos tentadores, e uma volutazinha de fumo azulado a subir, a subir até desvanecer-se, sinal da recompensa depois do dia de trabalho, a boa ceia quente, o lume que desenregela. Seguindo sempre em frente, passado um quarto de hora, estaria nos braços da mãe, secando-lhe as lágrimas, trazendo-lhe o coração que levara.

E continuava em dúvidas! Pois a quem mais do que à mãe queria ele?

E por fim quando se resolveu.., tomou para a esquerda.

Pobre mãe!

Nota:
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900

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