A partir de 1637, depois de 2 décadas de relativa acalmia, o Nordeste Trasmontano foi autenticamente varrido pelo vendaval da inquisição de Coimbra, que alvejava uma limpeza completa da heresia judaica, em verdadeiro religiocídio.
A primeira grande operação foi lançada em Quintela de Lampaças, com êxito evidente. Dezenas de prisões e muitas mais fugas, com a gente da nação de Quintela a levar dinamismo empresarial e recursos financeiros para terras estrangeiras. Seguiu-se a limpeza de Sambade e consequente agonia do maior conglomerado têxtil de Trás-os-Montes. Sim, antes da moderna era industrial, esta terra constituía-se numa verdadeira encruzilhada dos caminhos trasmontanos da rota da lã, chegando a contar- -se nela mais de 250 artesãos cardadores e fabricantes de lã, com uma cascata de pisões implantados nas margens dos ribeiros que descem a serra de Bornes.
No próprio tribunal de Coimbra se dava conta do êxito alcançado, com um promotor a solicitar dos inquisidores o lançamento de uma operação semelhante em Torre de Moncorvo, conforme se lê no processo de Francisca Vaz: - Lembro a Vossas Mercês que a Torre é terra nova em que importa ao serviço de Deus entrar a inquisição, que fez muito fruto entrando por testemunhas em Quintela e em Sambade. A Torre ficou mesmo limpa da gente da “infecta nação”, a partir dos anos de 1670. E ficou também limpa dos capitais e das empresas dos judeus, que se mudaram para outros sítios.
A limpeza étnica prosseguiu por Chacim, Vila Flor, Miranda do Douro, Freixo de espada à Cinta, Carção Mogadouro… Sobre esta última localidade, escrevia outro promotor da inquisição de Coimbra, em 1653: - Mogadouro, que há muito tempo arde em judaísmo e aonde o santo ofício tem presas mais de 60 pessoas e tem fugidas outras tantas ou mais, para não serem presas. Bragança albergava uma das mais numerosas comunidades hebreias do país e, porventura, a mais rica e poderosa, mercê da sua florescente indústria das sedas, essencial para vestir a casa real, as gentes da nobreza, os bispos e os padres que nas igrejas glorificavam Cristo, cobrindo-se, eles e os altares, com luxuosas sedas fabricadas em dois ou três centos de oficinas familiares, em Bragança. Por isso mesmo, por se tratar de uma comunidade numerosa e rica, a “nação de Bragança” despertaria especial interesse e apetite da parte do santo ofício.
Assim, ao findar da década de 1650, a avalanche de prisões, com várias pessoas “relaxadas à justiça secular”, fez com que muitos judaizantes brigantinos tomassem o caminho de Coimbra para se ir apresentar, antes que fossem prendê-los. Dir-se-ia então que os juízes daquele tribunal não tinham “mãos a medir”, tal o movimento de prisões e apresentações. Mais uma vez, tal como acontecera em finais da centúria de 500, os judeus brigantinos “entupiam” a inquisição de Coimbra. E então surgiu a ideia de fazerem uma petição, que enviaram àquele tribunal, manifestando o desejo de se apresentar a confessar suas culpas e pedindo para serem ouvidos em confissão por algum comissário ou inquisidor, na cidade de Bragança. A ideia ganhou concretização em 5 de janeiro de 1661, quando, cerca de meia centena de cristãos-novos assinou a citada petição. Por despacho do Conselho Geral, o santo ofício de Coimbra mandou para Bragança o novel inquisidor Manuel Pimentel de Sousa, que se fez acompanhar pelo escrivão do mesmo tribunal, Pedro Saraiva de Vasconcelos. Na capital trasmontana, durante 3 meses, entre Março e Maio daquele ano, eles assentaram morada e ouviram as confissões dos cerca de 50 judaizantes, ali se começando a organizar os respetivos processos.
Antes de continuarmos, vamos fazer uma breve apresentação do inquisidor e do escrivão, ambos trasmontanos, aquele de Vimioso e este da Torre de Moncorvo e contando parentes comuns, vários deles servindo igualmente o santo ofício. Manuel Pimentel de Sousa, como se disse, era natural de Vimioso, filho e neto de gente daquela terra. Cursou a universidade de Coimbra, formando-se em Cânones. Ali se fez padre, com “habilitação de genere” tirada em 1646, e ascendeu a cónego da Sé da mesma cidade. Em 30.4.1654, foi nomeado deputado do tribunal da inquisição e, em 3.7.1660, tomou juramento de inquisidor. Mais tarde, ingressou nos quadros do conselho geral do santo ofício. D. Maria de Morais, irmã do inquisidor Pimentel de Sousa era casada com Pedro Gouveia de Vasconcelos, capitão-mor do concelho de Algoso e uma filha destes, chamada D. Mariana de Morais Pimentel, casou na Torre de Moncorvo, com Cristóvão Saraiva de Vasconcelos, irmão do comissário da inquisição, abade de Chacim, Dr. Manuel Gouveia de Vasconcelos. A esta família estava também ligado o escrivão Pedro Saraiva de Vasconcelos que, nascido embora em Freixo de Numão, por 1602, veio pequeno com sua mãe, D. Leonor Saraiva de Vasconcelos, para Moncorvo, acompanhando o seu irmão, padre António Saraiva de Vasconcelos, nomeado “escrivão da câmara eclesiástica, visitações e resíduos da comarca” e que mais tarde, seria também nomeado comissário da inquisição.
Uma irmã destes, D. Brites Saraiva de Vasconcelos, casou em Torre de Moncorvo com Francisco Botelho de Morais, familiar da inquisição e “um dos homens ricos e principais da província”, conforme consta do processo de habilitação de seu filho, Paulo Botelho de Morais, que não conseguiu ser provido. Como se vê (e isto é apenas uma pequena amostra feita a partir de um ramo), tanto na família do inquisidor Pimentel de Sousa como na do escrivão Saraiva de Vasconcelos, como, aliás, na generalidade das famílias da nobreza cristã-velha, abundavam os funcionários e agentes da inquisição.
Na inquisição, como em outras instituições e nas estruturas do poder político em geral, o compadrio reinava e as famílias constituíam-se em verdadeiras agências de emprego. Voltemos atrás, ao mês de Janeiro de 1661, “ao tempo em que principiavam a fazer muitas prisões na cidade de Bragança, que continuavam com um excesso tão grande, que quase despovoava a dita cidade. E de tal forma que os presos os mais dos moradores daquela cidade até viam seus filhos andar pelas ruas, despidos e descalços, padecendo a necessidade, sem ainda à noite terem onde se recolher. E vendo isso aqueles que não estavam presos, temendo que os carcerados, ou por vingança, ou por se verem soltos, jurariam contra eles, se resolveram a fugir pra Castela ou apresentarem-se voluntariamente, declarando o que não haviam cometido”- conforme testemunhou mais tarde, na inquisição de Coimbra uma das mulheres que assinaram a citada petição.
Estamos agora no mês de Março de 1661, “na casa onde pousava o senhor inquisidor Manuel Pimentel de Sousa que, por ordem do conselho geral do santo ofício veio tomar as confissões das pessoas apresentadas”. Perante o senhor inquisidor, durante cerca de 3 meses, foram comparecendo os peticionários, cada um deles identificando-se e confessando depois as suas culpas de judaísmo, com Pedro Saraiva de Vasconcelos a organizar cada processo, e neles escrever as respetivas confissões. Autuadas as confissões e regressados a Coimbra o inquisidor e o escrivão, entraria aquele na análise de cada processo, certamente acrescentando confissões de outros presos e trocando informações de outros processos. E à medida que os processos iam ganhando corpo, cada um dos judaizantes de Bragança foi sendo chamado a Coimbra para ouvir a sentença ou para continuar o seu processo, até 1670. Vários acabaram presos e quase todos foram sentenciados, em penas mais ou menos leves.
Na impossibilidade de estudarmos aquele cento de processos, escolhemos alguns deles e, nos próximos números deste jornal, seguiremos um pouco da história de 3 dos agrupamentos familiares envolvidos e seus descendentes.
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